ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Falando sobre saúde mental e uma sociedade surda: opinião de um jovem comum

Gabriel Magno Beloti Lemos1; Gláucia Buratto Rodrigues de Mello2

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v15n28.0002

1. Brasileiro, 17 anos, neste ato assistido pelo pai Mauricio do Nascimento Lemos. Autor do relato
2. Antropóloga, socióloga, pesquisadora. Autora da Introdução e das Considerações finais

 

INTRODUÇÃO

Tem sido corrente uma narrativa mais engajada de pessoas que trabalham em atividades de inclusão social clamarem em alto e bom som: "Precisamos dar voz às "minorias"!"1. No meu trabalho de antropóloga vejo essa narrativa chegar por vezes aos povos indígenas brasileiros. Ainda que haja por detrás dessa assertiva o sincero desejo de permitir que eles se expressem por si mesmos, contribuindo para tirá-los do desconhecimento, do ocultamento, que a história do Brasil promove desde sempre sobre duas das três principais matrizes formadoras da população brasileira, "dar voz" ainda é um discurso dissimulado. Na verdade, voz eles sempre tiveram! O que lhes falta são ouvidos para escutá-los!

Povos afro-brasileiros e indígenas, entre outras tantas populações e comunidades, sofrem angústias, refletem sobre elas, têm propriedade sobre as suas razões e opinião sobre as suas realidades. Eles têm voz e podem, eles mesmos, falar muito bem sobre os seus próprios sofrimentos e reivindicar suas próprias necessidades, enquanto cidadãos brasileiros que são. O problema é que eles continuam não sendo ouvidos, o que, certamente, compromete a saúde mental deles, entendida no seu sentido mais amplo. A falta de empatia com a realidade dessas comunidades, grupos menores e diferenciados é, por vezes, resultante de um entendimento de que elas não têm nada interessante para dizer. Quando a narrativa vem da parte de jovens, via de regra, soa para os adultos como uma bobagem.

A voz do jovem Gabriel, autor do texto abaixo, é a voz de um adolescente que quer ser ouvido. Ele enviou à nossa Revista o seu relato para expressar com sinceridade uma realidade vivida, aliada a um positivo direito de participação cidadã. Conceitualmente, trata-se de um indivíduo coletivo que reflete sobre dramas existenciais comuns à idade dele e, além disso, ele expõe, criticamente, faltas sociais ao mesmo tempo em que arrisca sugestões. Ele o faz em primeira pessoa, mas, trata-se de uma fala extensiva ao drama comum a todo um segmento social; trata-se de um porta-voz que extrapola o indivíduo e alcança um coletivo, representativo de uma faixa etária e social pouco ouvida e, por conseguinte, mal conhecida, mal compreendida.

O relato abaixo do Gabriel é corajoso e inclusivo. É a voz de um jovem de 17 anos, terminando o ensino médio, pensando sobre a realidade social que se desenha no seu momento e no seu horizonte. O relato dele ilumina uma realidade ofuscada e diminuída por pais, educadores, profissionais da saúde mental e pelas instituições governamentais, contribuindo com uma importante crítica social com o seu entendimento. Confira...

 

RELATO DE UM JOVEM

A primeira vez que eu tive um ataque de ansiedade foi aterrorizante. Eu nem sabia o que era. Não me recordo o motivo. Lembro-me da sensação de ir perdendo o controle sobre as minhas próprias emoções. Foi doloroso. Foi o começo de um processo no qual, sem eu perceber, eu perdia uma parte minha a cada dia, eu fui perdendo a confiança em mim mesmo. Eu deixei de me confiar. E ouvia apenas meus pensamentos de autossabotagem.

Eu me lembro bem. Foi em 2021. Durante a pandemia de Covid-19, eu estava recluso, sem sair de casa. Eu tinha quatorze anos. Eu me lembro bem. Primeiro me veio um sentimento de fracasso sobre tudo o que eu vinha fazendo. Depois, uma culpa constante em relação às pessoas que me rodeavam. Era como se eu não as merecesse. Por fim, veio um sentimento de urgência - de um tempo que estava se acabando.

Como eu poderia ser mais produtivo? Foi o momento dos calafrios e eu começava a hiperventilar, procurando sempre um novo erro em mim mesmo, sem conseguir encarar a realidade tal como ela é. A realidade era como a minha mente a enxergava.

Estranhamente, nesses momentos, eu ia me sentindo mais brasileiro do que nunca. Não posso dizer que sou um pródigo em História, mas, pelo que eu pude aprender, ao longo desses anos em sala de aula, entendo que existe uma dificuldade na sociedade brasileira de encontrar respostas em seu próprio povo. Buscando sempre, na teoria, o sonho de um país melhor, não se considera, na prática, o impacto do sistema educacional sobre o futuro do país, por exemplo; e, sobretudo, quando o assunto é saúde mental. Ouvir as vontades do povo parece ser difícil demais. E ouvir os jovens parece ainda mais difícil. Ainda é assim.

Quando eu tive que voltar a me acostumar com a vida pós-pandêmica, com a mente ainda debilitada, fui jogado na escola, sem qualquer apoio psicológico e novas dificuldades sobrevieram: deveres aos montes e inseguranças sobre a necessidade de me ressocializar, sentimento que não tinha antes, e que veio após um longo tempo sem conversar com a maior parte dos meus colegas de classe.

Como um mecanismo de defesa, acabei agindo segundo velhos hábitos, que já não condiziam mais com quem eu havia me tornado durante a pandemia. Foi um processo longo e difícil ter que me reajustar àquela nova realidade, perdendo amizades, quando já não era mais tão fácil fingir alguma ligação duradoura. Ainda sem contato físico, usando máscaras, tentei ser produtivo, não conseguia, e me cobrava por isso.

Foram muitos os jovens, abalados psicologicamente e carregando consequências que perduram ainda hoje. Vimos nossas famílias se fragmentando pela epidemia, perdendo-se empregos, e nós, alunos, muitos de nós sem o acesso à internet necessária para as aulas remotas, sem o apoio necessário para aprendermos as matérias novas. Sofremos o luto. Sofremos a situação sociopolítica do país. Amigos próximos morreram pelo vício, levados por um escapismo imediato.

A questão não foi a falta de apoio das escolas. A compreensão dos professores, quando acontecia, foi muito importante. O problema foi que não houve para aquela situação um projeto de apoio do governo e um cuidado com a mente dos jovens brasileiros que perderam a confiança e a esperança. Que país esperam formar com tantos indivíduos sem perspectiva de futuro?

Para muitos, era preciso ouvir que estava tudo bem, quando não estava nada bem. E no final do dia? A saúde mental virou um tema comercial e de pouca relevância social. De um lado, sendo tratada como chacota: apenas um "mimimi", "falta de louça pra lavar", desprezo pela angústia de inúmeros brasileiros. De outro lado, ela sendo reconhecida, apenas quando presente em grandes círculos midiáticos, quando acontecia alguma tragédia. Setembro amarelo. Ou quando vinculada a campanhas políticas, sem uma proposta clara e realista. Virou piada mal feita.

Mas sabe o que não é piada? Eu ter que ver amigos meus se cortando e se embebedando antes dos quinze anos. Viciando-se com drogas e distúrbios alimentares sem a esperança de futuro, sem ajuda, condenados a pensar que ninguém se importa com eles e que os próprios pais não têm tempo e atenção para uma conversa sincera e acolhedora. Esses jovens se isolam em seus celulares e fones de ouvido. E também por isso são mal julgados.

Não é de hoje que os professores comentam o quanto a presença familiar está mais e mais distante da educação dos seus filhos. E ouço também eles comentarem sobre como as crianças estão agressivas. Ao invés de buscarem maior comprometimento e atenção, com o apoio do governo e dos pais, os professores parecem ser os culpados. Além disso, são ignorados casos clínicos que deveriam ser acompanhados e desagravados mais cedo. E não é de hoje que os professores estão tendo que lidar com uma carga cada vez maior de alunos com problemas de desvio de atenção e dificuldade de aprendizado. Isso, sem que eles estejam preparados para administrar problemas de alunos especiais. Diagnosticados ou não, esses alunos são jogados ainda bem novinhos nas instituições de ensino, sem o devido cuidado, acreditando assim enaltecer uma falsa inclusão desses indivíduos na sociedade.

Me parece que faz-se necessário no Brasil um grande investimento na Educação para a Saúde Mental. É preciso escutar o público infanto-juvenil para identificarem-se possíveis distúrbios, desenvolverem-se formas de lidarem com os seus sentimentos e a necessidade de planejamento para o futuro, ajudando os jovens em seus dramas. Jovens sem esperanças e em quantidade fazem do Brasil um país sem possibilidade de mudança. Da mesma forma em relação à educação sexual. Sem uma orientação imparcial e segura sobre o assunto, muitos adolescentes tornam-se suscetíveis ao aprendizado enviesado de práticas pornográficas, ao desconhecimento sobre os métodos de prevenção, limites de consentimento e prazeres individuais e partilhados. Sem essa base na Educação, é difícil ou pode ser necessário muito tempo para o adolescente encontrar um entendimento próprio sobre as suas paixões, aptidões e dramas, resultando em traumas inconscientes que comprometem nosso crescimento saudável e interfere nos nossos futuros relacionamentos amorosos, interpessoais e sociais.

Muitos indivíduos mantêm-se em relações tóxicas, abusivas e em experiências traumáticas, originadas principalmente nos primeiros estágios de suas vidas. Eu mesmo, tive mensagens íntimas minhas, enviadas para uma antiga paixão minha, expostas para uma boa parte da minha sala de aula. Tive que ver esse relacionamento se despedaçar aos poucos, sem eu entender o motivo, humilhando-me para mantê-lo. Vivi tudo isso muito sozinho. São dramas que marcam uma vida inteira. Poderiam ter sido assistidos, sem resultarem em danos severos na minha futura maneira de socialização.

Adultos com crises de burn out2 e, consequentemente, desinteressados de suas próprias vidas e carreiras profissionais são muito comuns nas sociedades mundial e brasileira. Somos levados a pensar, desde a infância, à luz de métodos de estudos idealizados na Revolução Industrial, que notas são mais valorizadas do que um verdadeiro aprendizado. Ainda hoje se acredita que o erro leva ao erro, e que cometer riscos é prejudicial para uma estabilidade financeira. Mas, com tantas oportunidades abertas com o avanço da tecnologia e dos meios digitais, tornou-se inviável continuar com esse mesmo pensamento. Impensáveis e numerosas novas carreiras surgiram e se solidificam no mercado como possíveis planos de futuro.

Faz-se necessária uma revisão no currículo disciplinar que inclua questões básicas do aprendizado para que nós, alunos, tenhamos a capacidade de explorar a nossa autonomia, aliando redes de ensino e programas de apoio psicológico. Afinal, para além do tratamento de dramas referentes à ansiedade e à identificação de gatilhos, um bom entendimento sobre a nossa saúde mental deve ser firmado, principalmente para conduzir o indivíduo em relação honesta com os seus pensamentos, consigo mesmo. E que sejamos capazes de ser quem almejamos e de agirmos em acordo com isso; assim estaremos sendo preparados como cidadãos para a vida adulta.

Assim, entendo, em minha sincera e humilde compreensão, que a saúde mental é a base para a construção das sociedades. É preciso garantir o acesso e apoio dessa ferramenta, de maneira gratuita e acessível a todos e sem tabus. A maioria não tem o privilégio (e não devia mesmo ser um privilégio) de ter apoio de uma terapia: falta de condições financeiras, dificuldade de deslocamento, não disponibilidade de internet ou de tempo, sobretudo se a prioridade da família é colocar comida na mesa a cada dia. E no corre-corre da vida, a maioria acaba guardando para si as suas inseguranças e traumas, como se fossem menos importantes. Tornam-se assim vulneráveis e menos francos consigo mesmos.

A maioria dos jovens brasileiros tem que se preocupar em conseguir um bom emprego para constituir e sustentar as suas futuras famílias; não pensa em salvar o planeta das mudanças climáticas, por exemplo. Colocar a saúde mental em pauta é também democratizá-la e devia ser um direito de todos. Dessa forma, como verdadeiros cidadãos, poderíamos todos vislumbrar um futuro promissor em uma situação mais confortável na vida.

Problemas mentais sempre existiram, mas nunca são profundamente debatidos. Tiroteios e massacres em escolas? As crianças guardam mais dores e mágoas do que se imagina, sofrimento que continua sendo subestimado. É preciso ouvir os mais novos e as suas dificuldades emocionais; dessa forma poderiam ser evitadas tragédias causadas em momentos de recaídas e crises. No final do dia? Eu sou apenas um adolescente de dezessete anos. Mas estou tentando expor o meu pensamento e gostaria que ele fosse ouvido e tornado possível. Não quero ficar calado. Caminhos trilhados são parte de mudança. Peço que você reflita sobre o assunto e agradeço pelo seu tempo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode parecer bobagem, obviedade, ingenuidade o relato de um jovem, mas, por tudo isso, é também o simples, o óbvio, que permanece não-dito, não ouvido e ... incomoda. Ele toma como ponto de partida um recorte temporal que marcou a vida dele e a de muitos jovens como ele, que foi a pandemia de Covid-19, o que exigiu de todos longo período de reclusão, pelo menos dois anos e meio, que, para um jovem é uma eternidade. E então, ele fala do descuido ou despreparo de pais, professores, profissionais do sofrimento mental e, sobretudo, do descaso do governo, enquanto sistema, para a administração de recursos e acessos.

Além do gatilho da pandemia que descortinou um novo cenário para toda a sociedade nacional e internacional, ele trata de um outro gatilho, mais complexo, que é a importância da manutenção da esperança, a construção de um futuro viável em uma sociedade mais saudável e mais feliz. Para isso, ele arrisca sugestões que constituem temas fundantes para uma sociedade mais justa e mais adequada. Ele fala da necessidade de revisão no sistema curricular e em valores arraigados na conjuntura educacional, incluindo-se melhor preparação dos professores e dos profissionais para a realidade em que vivemos. Ele fala da necessidade de um projeto de governo que leve em conta a necessidade mais ampliada de apoio psicológico à população mentalmente transtornada e cada vez mais expressiva. E ele fala mais alto por um segmento social muito negligenciado, que são os jovens, que precisam ser acolhidos e alimentados por esperança e para a construção do futuro de um mundo mais adequado à realidade em que vivem. Ele entende que a saúde mental é o ingrediente para isso e destaca a sua aposta na sinceridade das pessoas consigo mesmas, em relações mais amorosas, saudavelmente sociais, mais verdadeiras. Para ele, a saúde mental, a esperança e o vislumbre de um futuro devem estar ao alcance de todos, garantindo assim a construção de uma sociedade mais ajustada a valores mais humanistas, que resultem em menos angústias e mais felicidade. Que a "ingenuidade" desse jovem seja um recado a ser ouvido.

 

 

1O conceito de minorias sociais está associado a grupos sociais menores, que ficam à margem da sociedade maior. Usamos aspas para o uso desse conceito, considerando que talvez seja já passada a hora de revermos esse conceito, levando em consideração a diversidade social brasileira e que, somadas, as minorias somam a maioria.
2Síndrome de Burnout caracteriza-se pelo esgotamento profissional, estresse e condições desgastantes de trabalho.

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