ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

O abuso de psicotrópicos na atualidade: configuração sociocultural

Abuse of psychotropics currently: socio-cultural configuration

Abuso de psicotrópicos actualmente: configuración sociocultural

Gleicielly Zopelaro BragaI; Dionísio de Paula JuniorII

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v14n26.0009

I. Psicóloga; Mestranda em Saúde Coletiva (Universidade Federal Fluminense UFF); Especialista na modalidade Residência em Atenção Básica (Faculdade de Medicina de Petrópolis FMP FASE); Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Universidade Estácio de Sá - Petrópolis); Especialista em Psicologia Clínica (Universidade de Araraquara UNIARA)
II. Enfermeiro; Doutor em Psicologia; Docente do curso de graduação em Psicologia na Fundação Presidente Antônio Carlos - FUPAC, Ubá-MG

Resumo

O crescimento do mercado da indústria farmacêutica tem sido ampliado em razão do fenômeno da medicalização da vida. Nas últimas décadas, a aplicação de psicofármacos tem crescido em vários países ocidentais e até mesmo em alguns países orientais. O motivo dessa intensificação se dá pela constante expansão de diagnósticos de transtornos psiquiátricos e também pela inserção de novos psicofármacos no mercado farmacêutico. Assim, o objetivo da pesquisa é discorrer sobre o fenômeno abusivo de psicotrópicos na atualidade como sintoma da configuração sociocultural vigente. Trata-se de um estudo de revisão da literatura realizada a partir dos seguintes recursos informacionais virtuais para fundamentação teórica: Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e Google Acadêmico.

Palavras-chave: Medicalização; Psicotrópicos; Contemporaneidade; Psicanálise; Psicologia.


Abstract

The growth of the pharmaceutical industry market has been expanded due to the phenomenon of medicalization of life. In recent decades, the application of psychotropic drugs has grown in several Western countries and even in some Eastern countries. The reason for this intensification is due to the constant expansion of diagnoses of psychiatric disorders, and also to the insertion of new psychotropic drugs in the pharmaceutical market.
Thus, the aim of the research is to discuss the phenomenon of psychotropic abuse nowadays as a symptom of the sociocultural configuration in force. This is a literature review study based on the following virtual informational resources for theoretical foundation: Electronic Psychology Journals (PePSIC), Scientific Electronic Library Online (Scielo) and Google Scholar.

Keywords: Medicalization; Psychotropic; Contemporaneity; Psychoanalysis; Psychology.


Resumen

El crecimiento del mercado de la industriafarmacéutica se ha expandido debido al fenómeno de la medicalización de la vida. Em las últimas décadas, la aplicación de drogas psicotrópicas há crecido em varios países occidentales e incluso em algunos países orientales. La razón de esta intensificación se debe a la constante expansión de los diagnósticos de trastornos psiquiátricos y también a la inserción de nuevos psicofármacos e nel mercado farmacéutico. Así, el objetivo de la investigación es discutir el fenómeno del abuso psicotrópico em la actualidad como síntoma de la configuración sociocultural vigente. Este es um estudio de revisión de la literatura basado em los siguientes recursos informativos virtuales para la fundamentación teórica: Electronic Psychology Journals (PePSIC), Scientific Electronic Library Online (Scielo) y Google Scholar.

Palabras clave: Medicalización; Psicotrópico; Contemporaneidad; Psicoanálisis; Psicologia.

 

INTRODUÇÃO

Não muito distante, atravessamos a terceira revolução industrial, mais conhecida como técnico-científica, cujo principal contraste em relação às duas anteriores foi a inovação e a criatividade, o conhecimento evoluído, beneficiando a criação de novas tecnologias, principalmente no campo da psiquiatria e das neurociências (SILVA et al., 2012). Atualmente, a chamada quarta revolução industrial e seus impactos na sociedade têm sugerido reflexões sobre a forma de consumir, conviver, produzir. Como diz Pires (2018, p. 18), "no mesmo momento em que a comunicação instantânea se expande a interação física entre as pessoas se dilui. Estão caindo os limites entre o espaço público e privado e, por conta disso, a privacidade do indivíduo é exposta muitas vezes de maneira indesejada". Ao passo que vivemos momentos de conquistas e transformações no mundo das ciências, presenciamos também rotulação dos sentimentos. Em Modernidade liquida, obra de Bauman (1998), o autor traz o conceito da liquidez como antônimo da modernidade sólida, retratando a fragilidade das relações sociais e humanas subalternizadas frente às econômicas. É também nesse contexto que temos a lógica capitalista do consumo e, somado a ela, o imperativo da busca pelo prazer a qualquer custo, gerando dificuldades em se elaborar psiquicamente as frustrações, os sentimentos. Para tanto, com a promessa de cura, bem estar e felicidade, tudo é passível de uma ação medicamentosa (NASÁRIO e SILVA, 2016).

De acordo com Silva e Iguti (2013), medicamento é um produto farmacêutico que vence diferentes etapas no processo de produção e comercialização, cujo objetivo é a cura, podendo ser preventivo e paliativo. Os psicotrópicos são medicamentos que atuam diretamente no sistema nervoso e podem ser classificados como: os ansiolíticos e sedativos, os antipsicóticos (neurolépticos), os antidepressivos, os estimulantes psicomotores, os psicomiméticos e os potencializadores da cognição.

Nas últimas décadas, a aplicação de psicofármacos tem crescido em vários países ocidentais e até mesmo em alguns países orientais. O motivo dessa intensificação se dá pela constante expansão de diagnósticos de transtornos psiquiátricos e também pela inserção de novos psicofármacos no mercado farmacêutico (RODRIGUES, FACCHINI e LIMA, 2006).

O crescimento do mercado da indústria farmacêutica tem sido ampliado em razão do fenômeno da medicalização da vida. O que anteriormente se considerava característica da personalidade, a cada dia é convertido em doença. Temos hoje uma progressiva compreensão neuroquímica dos fenômenos psíquicos, em que todos os dias são criadas novas patologias para as quais se busca uma solução medicamentosa (MEIRA, 2012).

Por esse motivo, as campanhas para comercialização dos medicamentos e a má conduta da indústria farmacêutica tem sido denunciadas por alguns profissionais em todo o mundo, tais como: pesquisadores e psiquiatras norte-americanos, franceses, brasileiros e argentinos (Conselho Federal de Psicologia, 2012). A Organização Mundial da Saúde (2001), considerando o cenário contemporâneo, repleto de exigências e estímulos variados desde o início do milênio, informa um crescente aumento de sujeitos com sofrimento psíquico, em um total aproximado de quatrocentos milhões de pessoas no mundo. Notável por sua independência e individualidade, no cenário atual os indivíduos investem cada vez mais na evasão de sua condição humana, e na procura implacável do gozo1. Com o discurso positivo a favor do homem, encontra-se a ciência, com seu método psicofarmacológico que, supostamente, conduz ao fim do sofrimento, fixando a ideia de que existe cura para os males da alma (CANABARRO e ALVES, 2009).

Rossito e Ferraza (2013) enfocam o aumento da medicalização dos pacientes na dita "sociedade do espetáculo":

Com a profunda convicção de que o sofrimento significaria um desvio ou desajuste dos padrões existenciais, o homem atual, para a reconstituição de uma imaginária condição anterior e para a conquista de uma suposta felicidade incomensurável se submeteria a todos os tipos de estratégias contemporâneas. Inclusive se sujeitaria a todos os tipos de mecanismos atuais vinculados a um processo de normalização disciplinar que, na realidade, fragmentariam subjetividades, restringiriam a produção de singularidades e diferenças e desvalorizariam o próprio desejo do sujeito. Estratégias atreladas ao processo de psicopatologização da existência humana, de medicalização do social e de banalização da prescrição de psicofármacos que seriam determinadas para todos aqueles que se mostrassem tristes ou insatisfeitos com sua condição subjetiva (ROSSITO e FERRAZA, 2013, p. 112).

Evidente ferramenta no alívio dos sintomas indesejados, o tratamento medicamentoso tem sido utilizado indiscriminadamente. É importante ressaltar que o objetivo do consumo de psicotrópicos é o alivio de sintomas decorrentes da alteração do humor, da emoção, do comportamento ocasionada por algum transtorno mental (SILVA e IGUTI, 2013). Consequentemente, a neurobiologia e a psicofarmacologia vêm expandindo seu campo de atuação, onde o homem pós-moderno não mais se encontra como ser extraordinário e ímpar, mas perde suas particularidades pelo uso da medicação que procura tratar os sintomas de forma universal, não dispondo de recursos que deveriam ter o compromisso de buscar as significações; o agente dos sintomas (CANABARRO e ALVES, 2009).

Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo discorrer sobre o fenômeno abusivo de psicotrópicos na atualidade, como sintoma da configuração sociocultural vigente. Trata-se de um estudo de revisão da literatura realizada a partir dos seguintes recursos informacionais virtuais para fundamentação teórica: Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e Google Acadêmico.

A Alienação do Sujeito Contemporâneo

Segundo Nasário e Silva (2016), atualmente vivemos a era da dúvida, do questionamento de verdades e da fragmentação, portanto não é de se estranhar que seja exigido, a todo instante, uma nova habilidade, superação, com urgência e excelência para que se consiga, no mínimo, manter um espaço já alcançado. Centrada na felicidade, a cultura do bem estar tem seu projeto voltado para o imperativo da felicidade, como descrevem Furtado e Szapiro (2015):

Na versão contemporânea, a ênfase desse projeto se radicaliza e a busca pela felicidade se consolida como um anseio que depende da performance e da eficácia de cada pessoa em administrar sua vida. Os discursos sobre o bem-estar como objetivo da vida tornaram-se meta primordial nas sociedades atuais, e a felicidade é hoje colocada como uma das condições indispensáveis para sua concretização (FURTADO e SZAPIRO, 2015, p. 176).

Na busca incansável por uma vida equilibrada e pelo bem estar, tornamo-nos frágeis diante do mal estar. O que presenciamos é o culto à saúde, à felicidade e ao bom humor, onde não é tolerável a dor e o sofrimento (FURTADO e SZAPIRO, 2015).

O que antes era a trajetória para uma meta, é vivido como obstáculo a ser superado. Essa predominante urgência no imediato não permite o adiamento da satisfação, fazendo-se imperativo o acontecimento da mesma. Tal exigência torna válidos todos os meios para alcançar os resultados desejados, atingindo-se os ideais de forma rápida e sucinta, demandando criaturas sem limites e necessidades - um verdadeiro convite para que todos sejam super-homens, onde a subjetividade não faz morada (NASÁRIO e SILVA, 2016).

Segundo Foucault (1963/2001), a constante exigência de adaptação ao estilo de vida contemporânea e a incessante cobrança por maior produtividade e sucesso têm moldado o estado emocional do indivíduo. Sendo assim, o real motivo da prescrição dos psicofármacos está ligado, de diversas formas, ao momento histórico e social. Pensar o sujeito contemporâneo requer, necessariamente, entender que as transformações subjetivas estão intimamente ligadas às alterações sociais. Entende-se que a dependência do gozo no mundo atual tem relação com a busca pela não ausência de faltas. Age-se como se fosse necessária a atuação de sujeitos excessivamente operantes, sem a menor capacidade da utilização do simbolismo (PARAVIDINI et al., 2008). Logo, a sociedade contemporânea pode ser definida como a da cultura da imagem, em que se faz necessária a busca contínua pela satisfação imediata dos desejos e valores impostos pela massa e propagados pela mídia. Portanto, o imediato é o valor que interpõe vários aspectos da cultura e constitui qualidade essencial de qualquer bem a ser consumido, definindo a sociedade contemporânea como superficial (PARAVIDINI et al.,2008).

Caniato e Nascimento (2010) tomam as mudanças contemporâneas como causa para a mudança subjetiva:

Dessa forma se quisermos compreender a subjetividade contemporânea, ou ao menos alguns de seus aspectos, temos que investigar o modo pelo qual as transformações econômicas, sociais, políticas e culturais de nossa época – que ocorrem em um ritmo frenético e sem precedentes (GIDDENS, 1991) – podem repercutir no âmbito subjetivo (CANIATO e NASCIMENTO, 2010, p. 27).

De acordo com a visão dos mesmos autores, nessa sociedade de consumo, a mídia possui um poder esmagador, produzindo subjetividades de acordo com suas necessidades de mercado:

Alba Rico (2005) afirma que o capitalismo não apenas produz uma economia, pois para fazê-lo tem que construir ou reformar uma psicologia e uma sociedade. Tal reforma estará relacionada com a invasão da subjetividade pela lógica do mercado (...) Na assim chamada sociedade de consumidores, as pessoas tendem a tratar umas às outras como objetos de consumo e, desse modo, a se substituírem mutuamente com a mesma facilidade que o fazem ao comprar novas mercadorias (CANIATO e NASCIMENTO, 2010, p. 30).

Na contemporaneidade, o predomínio desse estilo de vida vivenciado tem sido cada vez mais estressante e difícil. Em decorrência das cobranças por produtividade, trânsito intenso, excesso de atividades, as pessoas têm procurado possíveis soluções para contornar os efeitos de tais vivências. Recentemente, o uso de substâncias psicoativas é uma das opções mais adotadas (NASÁRIO e SILVA, 2016).

Ostracismo da Significação do Sofrimento

Para Meira (2012), estamos vivendo uma verdadeira epidemia de diagnósticos, uma vez que a medicalização tem transformado as sensações físicas ou psicológicas normais em sintomas de doenças. Tais diagnósticos vêm causando uma proliferação nos tratamentos, convertendo as pessoas em pacientes potenciais. Promessas de felicidade e satisfação absoluta são oferecidas ao consumidor pela publicidade. Com esta, comumente tem-se imagens de sorrisos largos e de extrema felicidade, vendendo uma vida de prazer contagiante (NASÁRIO e SILVA, 2016).

Para o alívio dos sofrimentos, procuram-se medidas paliativas, existindo delas basicamente dois tipos: diminuição do sofrimento por meio de satisfações substitutivas e as chamadas substâncias tóxicas que tornam o usuário insensível à dor (SILVA, 2012). Oliveira (2015) observa que, para aplacar a banalidade cotidiana, são adotadas certas práticas medicamentosas como corretivo em resposta à necessidade humana de estar intensamente bem, banindo, de qualquer maneira, o sofrimento.

Lutando pela felicidade e plena satisfação, o homem tem feito uso da intervenção química com o intuito de banir a dor e o sofrimento de seu dia a dia, onde ganha independência do mundo externo. Porém, o custo é alto para quem quer anestesiar o corpo, prendendo-se num mundo próprio. Deixa de aprender com o mal-estar e de entender a raiz do tormento. Abolindo, então, as variadas formas de experiências complexas da vida, não é possível dar significado à dor (FURTADO e SZAPIRO, 2015).

Por se tratar de um alívio imediato para a dor e os demais sintomas, tornou-se uma prática comum confiar em métodos rápidos, sem se preocupar em dar significação ao sofrimento. Sendo assim, a medicalização da vida é uma busca incansável de satisfação plena, não importando qual seja o sintoma - sempre haverá um medicamento a ser receitado (LIMA, 2012).

Em uma escala sem precedentes, emudecendo a escuta da existência e da história dos indivíduos, os mesmos passaram a ser medicalizados com o intuito de finalizar qualquer desconforto psíquico (HENRIQUES, 2012).

De acordo com Freud (1930/1996, p. 30-31):

(...) podemos dizer que a intenção de que o homem seja "feliz" não se acha no plano da "Criação". Aquilo a que chamamos "felicidade", no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico. Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem prosseguimento, isto resulta apenas em um morno bem-estar; somos feitos de modo a poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição. É bem menos difícil experimentar a infelicidade.

Ainda segundo o mesmo autor, "a vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós, proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas" (FREUD, 1930/1996, p. 83). Medidas paliativas são exploradas o tempo todo com o intuito do alivio dos sintomas. No entanto, o sujeito acaba por se encontrar em uma alienação na consequência da cura da própria essência humana, por meio das substâncias tóxicas que prometem o fim do mal-estar psíquico (HENRIQUES, 2012).

Para cada sofrimento físico ou mental existe um remedinho milagroso. A famosa pílula mágica foi desenvolvida com o objetivo de proporcionar um estado de felicidade imune aos psiquismos, imperturbável diante das vicissitudes da vida. Com a necessidade exasperante cada vez maior de preencher o vazio interior, muitos são os adeptos do caminho fácil (NASÁRIO e SILVA, 2016).

Além de proporcionar prazeres, a intoxicação impossibilita a recepção de impulsos desagradáveis, assim como descreve Freud (1930/1996, p. 86):

O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse "amortecedor de preocupações", é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade (FREUD, 1930/1996, p. 86).

Evitar o contato direto com a realidade do mundo exterior tem sido um dos principais motivos para recorrer ao uso de substâncias entorpecentes, sendo elas capazes de isolar a desventura proveniente não apenas do mundo externo, mas também do organismo, tornando o homem blindado àquilo que pode causar-lhe sofrimento (CANABARRO e ALVES, 2009).

Psicanálise e Medicalização

Mesmo sendo parte da condição humana, a angústia, a ansiedade e a tristeza têm sido aplacadas pela medicalização. Ou seja, mesmo preparando o indivíduo para o mundo, fazendo parte da vivência humana, a imperativa necessidade de estar alegre e em constante estado de prazer tem eliminado a subjetividade. Procurando formas de solucionar a questão do impasse na constituição da civilização em que o desejo é adiado, o homem tem como missão passar do funcionamento do princípio do prazer, para o princípio da realidade. O autoerotismo acaba por substituir o prazer imediato, lugar narcísico do eu ideal, para formas de prazer mediado com o desenvolvimento do ideal do eu (NASÁRIO e SILVA, 2016).

Na pós-modernidade, a psicopatologia está ligada ao fracasso na realização e glorificação do eu do funcionamento psíquico. Em outras palavras, frente à cultura do narcisismo e do espetáculo, o fracasso representa o caos. Toda essa intimidação culmina com a depressão, síndrome do pânico, toxicomania, estando o sujeito inapto ao mercado, à sociedade pós-moderna. A partir de então, surgem as drogas, como tentativa desesperada de uma possível solução para glorificação do eu, mesmo que o caminho em questão seja o farmacológico (BERTONZZIN, 2016). Sendo assim, a medicação proporciona estado de prazer e alegria; entretanto, como consequência, elimina parte da experiência humana como ansiedade, dor, angústia, frustração e tristeza (PARAVIDINI et al., 2008).

A psicanálise encontra-se do outro lado desta vertente. Mais de cem anos se passaram desde as escutas de Freud aos pacientes histéricos e ainda não se apreende como o sintoma que muitos querem extinguir representa a maneira com que o indivíduo encontrou para expressar o que ainda não construiu significado. Atuando na contramão das receitas instantâneas, a psicanálise trabalha com o sujeito, permitindo-lhe a construção de um significado para seu sofrimento por meio da experiência subjetiva. Denominado associação livre, esse método se constitui pela fala livre do paciente a respeito de seus pensamentos e procura revelar o significado inconsciente das palavras e as produções imaginárias de um individuo. Dá-lhe a oportunidade de compreender seus conflitos, assimilar situações traumáticas, ressignificar questões (LIMA, 2012).

De acordo com Freud (1930), em O mal-estar na civilização, o mal-estar surge como resultado entre o antagonismo e as exigências da pulsão e as restrições que a civilização impõe. Marcado pela insatisfação, o homem se encontra delimitado, fadado à busca incansável da felicidade perdida.

Segundo Henriques (2012), para a psicanálise, inerente à subjetividade tem-se o mal-estar que, assim como o bem-estar psíquico, está associado à coexistência de instâncias conflituosas. Nessa perspectiva, à luz da moral do espetáculo, não é possível ter qualidade de vida, levando-se em conta que todo desconforto psíquico é entendido como sintoma a ser tratado.

Uma vez que a Psicanálise, ou qualquer proposta psicoterápica, demandam tempo e gastos consideráveis na obtenção de alívio do sofrimento, a busca por tratamentos medicamentosos para limitações impostas pela dor mental tem aumentado pois, com os valores axiais dessa visão de mundo, cada vez mais a rapidez e a garantia são valorizadas (NASÁRIO e SILVA, 2016).

A padronização de uma cura para todos os males da alma não é de se estranhar. Uma vez que certos tipos de comportamentos e síndromes, como a depressão, por exemplo, não são admissíveis; a tolerância e a compreensão não acontecem pois, em nossa sociedade, quem se recolhe e se isola é cruelmente criticado, desprezado, uma vez que, constantemente, os indivíduos são estimulados a agir, tomar decisões, estar a todo tempo em constante movimento, ativos. A forma como são considerados os distúrbios do humor, nos seus dois polos, o maníaco e o depressivo, é uma determinação social. O mais aceitável e até mesmo o estimulado nas sociedades competitivas é o polo maníaco (NASÁRIO e SILVA, 2016).

As pílulas mágicas podem causar inúmeras consequências aos sujeitos, pois são medicamentos que têm por objetivo suprimir o sofrimento, eliminando os problemas e aumentando a produtividade. Mesmo que proporcionem tal bem-estar, as mesmas agem apenas nos sintomas, não atuando especificamente nas causas. Deve-se também levar em consideração que o psicotrópico perde sua eficácia com o tempo, sendo necessárias doses cada vez mais elevadas e, assim, podendo induzir a automedicação (TAVARES e HASHIMOTO, 2010).

De acordo com Torezan e Aguiar (2011), os laços sociais têm se tornado cada vez mais frágeis e, portanto, proteger a subjetividade que se encontra cada vez mais fragilizada, se faz imperativo na atualidade:

Em síntese, a subjetividade, para a psicanálise, é definida como dividida em duas ordens de funcionamento, relativas ao consciente e ao inconsciente, e essencialmente constituída pela sintaxe inconsciente. O sujeito da psicanálise é o sujeito do desejo, estabelecido por Freud através da noção de inconsciente, marcado e movido pela falta; distinto do ser biológico e do sujeito da consciência filosófica. Esse sujeito se constitui por sua inserção em uma ordem simbólica que o antecede, atravessado pela linguagem, tomado pelo desejo de um Outro e mediado por um terceiro (TOREZAN e AGUIAR, 2011, p. 26).

Podemos perceber que o uso desenfreado da medicalização tem como resultado o aprisionamento dos corpos e sua respectiva subjetividade uma vez que, na atualidade, a individualidade perde espaço e a incapacidade humana de sofrer torna-se a principal característica do sujeito (TAVARES e HASHIMOTO, 2010). Vale lembrar que não se trata de uma crítica à total e completa medicalização e sim que a subjetividade humana não pode ser entendida apenas pelos aspectos orgânicos (MEIRA, 2012).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A característica da nossa atual sociedade é uma atuação feroz sobre o sujeito. Um conjunto de fatores proporcionados por ela leva o indivíduo ao desgaste. São eles: o ritmo de vida acelerado; a rapidez de acesso às informações; as cobranças por produtividade; o imediatismo que ocorre nas relações e a necessidade de demonstrar felicidade e bem-estar a todo custo e a todo momento. Enquadrando-se na realidade atual e encontrando apoio na área médica, o uso de psicotrópicos é uma constante na vida dos sujeitos que buscam formas de adaptação. É da própria cultura contemporânea o entusiasmo em difundir os ideais de imediatismo e de prazer ilimitado, o que faz com que muitas pessoas se considerem anormais por não compartilharem desse entusiasmo esfuziante.

De acordo com a definição de Freud, o mal-estar é o resultado da ausência de satisfação total ou da completude, sendo inerente à condição do ser humano, uma vez que o ser humano é um estado simbólico que saiu do registro da necessidade e entrou no do desejo. O mal-estar, então, é o preço a se pagar pela cultura, não existindo sentido em eliminá-lo, uma vez que ele constitui o homem, a não ser que se escolham as drogas, vivendo no mundo das fantasias.

Não foi objetivo desta revisão ignorar a validade da psiquiatria e da psicofarmacologia mas, ao discutir as promessas ofertadas pela medicalização da dor-do-existir, do bem-estar e prazeres ilimitados, questiona-se também a entrega subjetiva ao imediatismo contemporâneo, onde se faz indispensável a busca desenfreada e desesperada pela felicidade plena, mesmo que plástica e artificial. Tal imediatismo propagado é mais um sintoma da sociedade em que o homem não é mais capaz de suportar os altos e baixos da vida, estando este impossibilitado de qualquer espécie de adiamento ou frustração.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1. Acreditamos que as articulações com outros autores também são de grande importância para o esclarecimento do conceito do gozo. Porém, achamos mais interessante nos atentar à Noção de gozo como o estruturalmente inacessível, de Lacan, por estar alinhada com a proposta de nosso trabalho. "Porque aquilo que chamo gozo, no sentido em que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto e até mesmo da proeza" (LACAN, 2001/1966, p. 12).

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