ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Cumprimento de medida de segurança na perspectiva das interfaces entre saúde mental e poder judiciário1

Implementation of security measures in a psychiatric hospital from the perspective of the interfaces between mental health and the judicial power: case report

Cumplimiento de la medida de seguridad desde la perspectiva de las interfaces entre salud mental y el poder judicial: reporte de un caso

Marcos Aurélio FonsêcaI; Júlia Cruz Moreno SiqueiraII

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v14n26.0007

I. Professor adjunto do curso de graduação em Terapia Ocupacional da UFMG; doutorando em Saúde Coletiva na FIOCRUZ – Instituto René Rachou, tutor da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da FHEMIG
II. Terapeuta ocupacional, especialista em Saúde Mental, profissional da rede municipal de Saúde Mental de Belo Horizonte

Resumo

O presente artigo tem como objetivo relatar o cumprimento de medida de segurança nas interfaces entre a saúde mental e o poder judiciário. Como metodologia foi feita uma abordagem qualitativa em pesquisa descritivo-exploratória, usando a estratégia do relato de caso único de um homem admitido no Instituto Raul Soares. Os resultados apresentados foram: relato da internação pelo prazo inicial de um ano e que, após três meses (março a junho de 2019); foi obtida a determinação judicial de reconversão para tratamento ambulatorial; a demora da autorização judicial para a alta repercutiu negativamente no quadro geral; as intervenções se sustentaram na sociabilidade dos indivíduos, na perspectiva de manutenção dos laços familiares, sociais e comunitários. Por conclusão é considerado que a alta do paciente deve ocorrer no timing adequado, evitando o prolongamento desnecessário da internação e o agravamento do quadro, em oposição à promoção da saúde mental.

Palavras-chave: Medida de segurança; Tratamento involuntário; Hospitalização.


Abstract

This article aims to report compliance of a security measure at the interfaces between mental health and the judiciary. As methodology, this research utilizes a qualitative approach in a descriptive-exploratory path, using the strategy of a single case report of a man admitted to the Instituto Raul Soares, Minas Gerais, Brazil. The results are: report of hospitalization for the initial period of one year, after three months (March to June 2019); a court order for conversion to outpatient treatment was obtained; the delay in obtaining judicial authorization for discharge had a negative impact on the overall picture. The interventions were based on the sociability of individuals, from the perspective of maintaining family, social and community ties. As conclusion, se have some things: discharge must occur at the proper timing, avoiding unnecessary length of hospital stay and worsening of the condition, as opposed to promoting mental health.

Keywords: Security measure; Involuntary treatment; Hospitalization.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo reportar el cumplimiento de una medida de seguridad en las interfaces entre la salud mental y el poder judicial. La metodología utilizada fue le enfoque cualitativo en una investigación descriptivo-exploratoria, utilizando la estrategia de reporte de un solo caso de un hombre ingresado en el Instituto Raúl Soares, Minas Gerais, Brasi. Como resultados se presenta el reporte de hospitalización por el período inicial de un año y que, después de tres meses (marzo a junio de 2019); se obtuvo orden judicial de conversión a tratamiento ambulatorio; la demora en la obtención de la autorización judicial para el alta tuvo un impacto negativo en el panorama general; las intervenciones se basaron en la sociabilidad de las personas, desde la perspectiva de mantener los lazos familiares, sociales y comunitarios. Como conclusión se muestra que el alta debe ocurrir en el momento adecuado, evitando la prolongación innecesaria de la hospitalización y el agravamiento de la situación, frente a promover la salud mental.

Palabras clave: Medida de seguridad; Tratamiento involuntario; Hospitalización.

 

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, foram significativas as mudanças decorrentes do movimento social nomeado de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) no que se refere às dimensões da dignidade humana e da inserção social das pessoas com transtornos mentais. Apesar dos avanços e do advento da Lei Federal nº 10.216, de 06 de abril de 2001 (BRASIL, 2001), os benefícios da desinstitucionalização progressiva e do tratamento em serviços substitutivos ainda não se estenderam plenamente àquelas pessoas que mantêm a mesma condição social e patológica e que cometeram delitos. Quando um delito grave é cometido, sendo a pessoa considerada como réu inimputável, são definidas as medidas de segurança, com consequente tratamento compulsório em manicômios judiciários e hospitais psiquiátricos. No bojo da Lei nº 10.216, os manicômios judiciários passaram a ser chamados de Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP). Para a definição das medidas de segurança, permanece como regulamentadora a Lei Federal nº 7.209, de 11 de julho de 1984, nomeada Lei de Execuções Penais, que determina: "o condenado a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado" (BRASIL, 1984)

Ainda considerando a Lei nº 10.216, é direito da pessoa com transtorno mental ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Todavia, a lei manteve as internações e estas são assim definidas: as voluntárias, como aquelas que se dão com o consentimento dos usuários e as involuntárias, como aquelas que se dão sem o consentimento dos usuários e a pedido de terceiros e, ainda, as compulsórias (ou medidas de segurança), como aquelas determinadas pela Justiça. A internação, em qualquer de suas modalidades, só deve ser indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes e somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

No estado de Minas Gerais, estão localizadas três unidades hospitalares com função exclusiva de abrigamento dos casos judicializados: Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz (HPJJV), em Barbacena; Hospital de Toxicômanos Padre Wilson Vale da Costa (HTPWVC), em Juiz de Fora e o Centro de Apoio Médico e Pericial de Ribeirão das Neves (CAMP-MG). No total, esses estabelecimentos ofereciam 296 vagas em 2011, com maioria dessas para a população masculina (DINIZ, 2013), o que não foi expandido nos últimos anos. Pode-se, então, supor que outros serviços de saúde mental (hospitais psiquiátricos – para internações, ou Centros de Atenção Psicossocial – para acompanhamentos ambulatoriais) são utilizados para cumprimento das medidas de segurança dado o número reduzido de vagas. De modo inovador, foi implantado no estado um programa de desinternação progressiva denominado de Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ). Esse programa foi efetivado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e realiza acompanhamento das pessoas que cometeram crimes e que tenham o diagnóstico de transtorno mental (FERNANDES, PONTES e VENTURA, 2015).

A intervenção do PAI-PJ é determinada por juízes das varas criminais que, auxiliados por equipes multidisciplinares do programa, definem qual é a melhor medida judicial a ser aplicada, com o objetivo de conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social. A equipe do PAI-PJ é composta por psicólogos, assistentes sociais e bacharéis em Direito. As principais premissas do programa são: acompanhar os processos criminais, fornecendo subsídios técnicos para a prestação jurisdicional nas várias fases do processo; auxiliar a autoridade judicial na individualização da aplicação e execução das penas e medidas de segurança; orientar-se pelos princípios da Reforma Psiquiátrica; trabalhar no sentido de viabilizar a acessibilidade aos direitos fundamentais e sociais previstos; dar-se de modo intersetorial, promovendo a parceria do Judiciário, Ministério Público e Executivo (FERNANDES, PONTES e VENTURA, 2015).

No ano de 2011, foi realizado no Brasil o Censo dos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTP), quando foram identificados 23 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) e três Alas de Tratamento Psiquiátrico (ATP), localizadas em complexos penitenciários. Constatou-se que, naquele ano, a população total dos 26 ECTP era formada por 3.989 indivíduos, dos quais 93% (3.684) eram homens e 7% (291) eram mulheres. A maioria dos usuários enfrentava situação de vulnerabilidade social antes do cumprimento da medida. Este censo apontou que quase metade dos internos era constituída por pardos e pretos (44%). Em geral, possuíam baixo nível de escolaridade, sendo 23% analfabetos e 43% com ensino fundamental incompleto. Havia também uma concentração de indivíduos que exerciam ocupações que exigem pouca ou nenhuma qualificação e que tinham baixa remuneração, como vendedores em comércio e trabalhadores na área agropecuária (31%) e trabalhadores industriais (22%). Os desempregados constituíam 17% da população (DINIZ, 2011).

Dos internos identificados pelo censo, havia 2.839 indivíduos em cumprimento de medida de segurança no país, sendo que 69% (1.963) não haviam cometido nenhuma infração penal anterior à que conduziu a atual medida de segurança, ou seja, antes de suas internações e, assim, poderiam ser considerados réus primários (DINIZ, 2011). Em outro sentido e de forma complementar, as decisões que podem alterar, revisar ou extinguir uma medida de segurança são tomadas pelo juiz a partir das informações encaminhadas pelos serviços de custódia. Desta relação intersetorial entre saúde mental e poder judiciário emergem decisões que podem selar o destino daquele que cumpre a medida de segurança.

Nesta pesquisa, realizada em um serviço hospitalar psiquiátrico público de Belo Horizonte – Instituto Raul Soares – vinculado à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), tomou-se como problema a relação entre os setores (ou campos) e as repercussões que a demora da resposta do poder judiciário pode gerar na construção do caso clínico, no sentido de que a internação prolongada pode contribuir negativamente para a responsabilização e passa a contribuir para o aumento da ansiedade e o surgimento de sintomas indesejáveis. As intervenções de um dos pesquisadores e dos demais membros da equipe durante o período da internação do usuário e seus efeitos sobre o caso, registradas no prontuário, foram tomadas como fontes de dados para a investigação e a análise do problema.

A motivação dos pesquisadores para o relato e a discussão ora apresentadas surgiram ao se verificar que, no caso do indivíduo protagonista, a relação com o sistema judiciário nem sempre estava alinhada com as propostas de atuação da equipe multidisciplinar que o atendeu durante os três meses de internação para o cumprimento da medida. Pretendeu-se, então, investigar os efeitos sobre a clínica dos saberes e fazeres dos dois campos. As informações geradas neste estudo poderão motivar novas discussões acerca da validade e a eficácia das medidas de segurança, levando-se em conta as relações institucionais e os seus desdobramentos, além de propor formas de inclusão do próprio réu e seus familiares no processo de cumprimento da medida.

O objetivo deste trabalho é relatar um caso individual de cumprimento de medida de segurança, na perspectiva das interfaces entre o campo da saúde mental e o do poder judiciário, bem como contribuir para a reflexão sobre as possibilidades da medida de segurança como benefício clínico para o indivíduo, além de descrever os principais desafios enfrentados pelas instituições para o efetivo cumprimento da medida de segurança. Foram utilizados os registros do prontuário, que contemplavam as intervenções realizadas por um dos pesquisadores e pelos demais membros da equipe multidisciplinar no período da internação.

 

REFERENCIAL TEÓRICO

Um breve recorte histórico sobre as instituições hospitalares em saúde mental

Até o final da Idade Média, as pessoas reconhecidas como loucas não eram submetidas aos processos formais de exclusão social ou de reclusão em espaços com esta finalidade específica. O começo da mudança desse entendimento se deu em meados do século XV e, em toda a Europa, foram criados estabelecimentos não só para segregar os loucos, mas todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, davam mostras de alteração (FOUCAULT, 1978). Incluíam-se os inválidos, os miseráveis, os mendigos, os desempregados, as pessoas com doenças venéreas, os libertinos, os eclesiásticos em infração e outros. O que se realizava nesses lugares não era a cura médica para a loucura, mas a exclusão social (BLEICHER e VIANA, 2012).

De acordo com Tenório (2002), ao relatar a história da origem da psiquiatria, um dos momentos emblemáticos se deu em 1793, logo após Philippe Pinel ter assumido a direção do hospital de Bicêtre, em Paris. Couthon (uma das maiores autoridades da Revolução Francesa) inspecionou o local e, após os primeiros contatos com os internos, o diretor lhe disse "Ah!, cidadão, você também é louco de querer desacorrentar tais animais? [...] Faça o que quiser. Eu os abandono a você. Mas temo que você seja vítima de sua própria presunção". Ao que Pinel teria respondido: "Tenho a convicção de que estes alienados só são intratáveis porque os privamos de ar e liberdade". Então, em 11 de setembro do mesmo ano, Pinel recebeu permissão para libertar os internos. A princípio, teriam sido libertados 12 deles e, algum tempo depois, duzentas pessoas do hospital de Bicêtre e outros de Salpêtrière (TENÓRIO, 2002). Em 1801, Pinel publicou o "Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental", considerado o marco que inaugura a Psiquiatria como especialidade médica. A publicação oferecia um novo olhar sobre a loucura, através da abordagem clínica e da descrição de sua visão terapêutica. O louco não era somente um insensato, privado de razão; existia uma comunicação possível, porque a razão nunca seria totalmente perdida (TEIXEIRA, 2019).

Pela compreensão de Pinel, a causa da loucura era a imoralidade, entendida como excesso, exagero ou desvio. Por entender a doença como relacional, acreditava-se que o dito louco deveria afastar-se das percepções habituais que poderiam ter causado sua doença, ou acompanhado seu despertar. Daí veio no nome da terapia, chamada de tratamento moral, para atingir a normalidade das funções mentais, seria necessária a reeducação dos costumes, uma reeducação moral, essencialmente repressiva (BLEICHER e VIANA, 2012).

O tratamento moral ganhou forma e lugar em uma instituição: o manicômio (com seus sinônimos: asilo e hospício). Acreditava-se que o ambiente em que vivia o indivíduo desempenhava um papel fundamental na sua recuperação. O objetivo do manicômio era afastar o louco das percepções habituais e da confusão da vida cotidiana, geradoras da doença, submetendo-o a uma disciplina severa e paternal, num mundo inteiramente regido pela lei médica. O manicômio, por si só, era um instrumento de cura. Se o caso fosse considerado incurável, restaria à pessoa o confinamento definitivo, pois a loucura geraria maus hábitos (BLEICHER e VIANA, 2012) que poderiam contagiar aqueles não loucos.

Pinel utilizou-se da religião, do medo, do trabalho, do olhar dos outros, da infantilização, do julgamento perpétuo e, finalmente, do médico – detentor da autoridade dentro do asilo – para produzir a cura. Embora alegasse que atos de violência poderiam pôr o trabalho a perder, defendia que era necessário manter a autoridade sobre o alienado. O uso de repressão era usado sempre que necessário, na medida suficiente para vencer uma eventual resistência do doente para se submeter ao tratamento. As figuras de autoridade deveriam causar medo e incutir a culpa no doente (BLEICHER e VIANA, 2012).

A hospitalização, entendida como geradora de dependência, de perda dos elos comunitários, de cronificação e de exclusão social criou, como forma de enfrentar o problema da institucionalização dos pacientes, um arsenal de serviços alternativos ao hospital e de medidas para reduzir a internação, propondo inclusive a despsiquiatrização. Porém, no sentido profissional de dividir ou de transferir o trabalho terapêutico para outras categorias profissionais, foram redimensionados os papéis do Serviço Social, da Psicologia, da Terapia Ocupacional, da Enfermagem e de outros (MOEBUS e MERHY, 2017).

A Reforma Psiquiátrica Brasileira emergiu como um importante movimento social no país no final da década de 1970 e propôs as iniciativas de reformar a maneira desumana e não científica como estavam sendo tratadas as pessoas com transtornos mentais (AMARANTE, 2020). Durante anos de luta antimanicomial, o modelo vigente durante séculos foi duramente contestado e desconstruído, até que o marco legal definitivo fosse estabelecido, pela Lei Federal nº 10.216, 06 de abril de 2001, que "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental" (BRASIL, 2001).

Foi, desde os primórdios, uma luta contra a privação da liberdade e de outros direitos fundamentais do homem, marcada pelo conhecido lema "a liberdade é terapêutica" (MOEBUS e MERHY, 2017). Durante as últimas décadas, para além da substituição dos leitos hospitalares – nos tradicionais manicômios – pelos serviços substitutivos e territorializados, está em construção um outro modelo de cuidado, cujos pilares são os pressupostos do modelo da Atenção (ou Reabilitação) Psicossocial, no sentido da clínica que recusa o reducionismo à doença e amplia seus horizontes para o acolhimento e cuidado das pessoas com transtornos mentais, considerando suas subjetividades, vivências e sociabilidades (PITTA, 1996; GUERRA, 2004). Essas foram a escolha teórica que subsidiaram o presente estudo.

Pode-se imaginar, logo de início, que os tratamentos involuntários seriam absolutamente contrários a todos os valores ou princípios que inspiram ou fundamentam a RPB ou que um serviço, onde exista o tratamento involuntário, já não merece ser considerado como alinhando aos princípios reformistas. A constatação da involuntariedade denunciaria sua corrupção e suas tendências para as práticas manicomiais (MOEBUS e MERHY, 2017). No entanto, a questão do tratamento involuntário pode ser um potente analisador, ou seja, revelador, expositor ou tradutor dos modos de produção de cuidado em ação e relação nos variados serviços de saúde mental (MOEBUS e MERHY, 2017).

A involuntariedade ocorre no tratamento em resposta aos atos que negam o projeto terapêutico, como o uso de psicotrópicos ilícitos; pela recusa de procedimentos, como tomar os medicamentos, podendo representar muitas vezes um impedimento ao próprio tratamento, ou um comprometimento de seus resultados. Sendo assim, há uma impossibilidade de se evitar, completamente e em todos os casos, o tratamento involuntário, uma vez que ele está difusamente distribuído ao longo do acontecimento clínico. Há, no manejo das situações de involuntariedade, uma abertura possível para construção da autonomia do sujeito em questão, ainda que com intervenções que criem uma tutela temporária, colocando o que houver de involuntário em análise (MOEBUS e MERHY, 2017).

Com a lei nº 10.216, de 2001, as internações passaram a não ter mais sentido, visto que ela determina que o melhor tratamento em saúde mental consiste na atenção territorial, sendo a internação o último recurso, devendo ocorrer em local apropriado ao tratamento, em instituições de saúde mental que respeitem prazos (SANTOS, FARIAS e PINTO, 2015). No entanto, ainda ocorrem internações atualmente, sejam estas voluntárias, involuntárias ou compulsórias.

A substituição da internação compulsória judicial por tratamento ambulatorial e a criação de programas como o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) em Minas Gerais, iniciado em 1999, demonstram como é possível realizar o acompanhamento ao longo do processo criminal que ofereça atenção integral à saúde junto à rede intersetorial. O processo é pautado na atenção psicossocial do indivíduo assistido, sem internação em instituição fechada, portanto, sem a lógica da periculosidade. Parte-se da concepção da necessidade de investir na sociabilidade das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, mantendo-as na sua comunidade. O conceito não é de punição, mas de tratamento (SANTOS, FARIAS e PINTO, 2015).

Periculosidade e suas repercussões: a determinação das medidas de segurança

O louco-criminoso fora posto na fogueira na Idade Média, fora isolado nos hospitais gerais, junto a outros desvalidos no século XVIII, e tem sido tratado em hospitais psiquiátricos ou internado em manicômios judiciários na contemporaneidade. As abordagens do Direito e da Saúde Mental se entrecruzam para lidar com as contradições humanas e suas variabilidades, mas são divergentes. Enquanto o objetivo do primeiro campo ainda se resume à necessidade de proteção social, o segundo é marcado por denúncia do abandono do louco, por vidas pausadas pela institucionalização (SANTOS, FARIAS e PINTO, 2015).

De acordo com Prado e Schindler (2017), a lei presume a periculosidade do infrator acometido por doença mental e, mediante o exame médico-pericial, é dado ao Poder Judiciário, o atestado de que o indivíduo é perigoso para o convívio social. O exame que verifica a integridade mental e, consequentemente, a periculosidade do infrator é realizado por psiquiatras para ser, posteriormente, levado em conta pelo juiz para determinação da inimputabilidade do indivíduo e consequente imposição da medida de segurança que, conforme a legislação penal brasileira, representa a intervenção estatal na liberdade do indivíduo inimputável em razão de doença mental, que cometeu fato típico e antijurídico, à qual se atribui a função de tratamento, visando a preservar a sociedade do perigo que o indivíduo representa (PRADO e SCHINDLER, 2017).

Portanto, é preciso cuidar para que não se relacione a medida de segurança stricto fato sem considerar o indivíduo pois, presumida a periculosidade com base em critérios objetivos, estariam desrespeitados os princípios da necessidade e da individualização da medida de segurança. É importante lembrar que a avaliação da insanidade é diferente da análise da perigosidade do sujeito; a primeira diz respeito à verificação da existência e da manifestação da doença mental no momento do fato, e se esta afastou a capacidade de entendimento e de vontade, enquanto a verificação da perigosidade deveria passar pela avaliação do risco que o indivíduo representa para o grupo social, o que não ocorre na prática (PRADO e; SCHINDLER, 2017).

De acordo com Rossi (2015), a introdução formal das medidas de segurança foi a maior modificação proposta pelo Código Penal de 1940, em relação ao sistema penal anterior, que definia que os loucos ou insanos que cometessem crimes deveriam ser entregues às suas famílias ou recolhidos e internados em casas especialmente destinadas a acolhê-los. A medida de segurança se difere da pena pois, enquanto a pena tem caráter declaradamente punitivo, a medida de segurança tende a se apresentar de forma mais preventiva.

As internações determinadas pela Justiça são aplicadas àqueles que, de acordo com a Lei 2848/40, no seu Art. 26: "por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento" (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11-07-1984).

De acordo com a Lei nº 7.209, de 11-07-1984, Art. 96 - as medidas de segurança são:

I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;

II - Sujeição a tratamento ambulatorial. Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta.

Ainda com base na mesma lei, Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.

§ 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

§ 3º - A desinternação, ou a liberação, será sempre condicional devendo ser restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de 1 (um) ano, pratica fato indicativo de persistência de sua periculosidade (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

§ 4º - Em qualquer fase do tratamento ambulatorial, poderá o juiz determinar a internação do agente, se essa providência for necessária para fins curativos (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

A ocorrência da internação, que pode ser feita em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) ou em um hospital psiquiátrico, bem como a sua alta, devem ser comunicadas ao Ministério Público Estadual, no devido prazo de 72 horas A caracterização de um réu como inimputável é feita por uma perícia médica que deve concluir, nesses casos, que ele não tinha a capacidade de entender o caráter ilícito de sua ação. Por conta disso, esse réu não é julgado por sua culpabilidade, mas sim, por sua periculosidade, sendo destinado ao tratamento de maneira compulsória (BRASIL, 1984).

Percebe-se que o Direito Penal Brasileiro, apesar de falar em alienação mental e não em transtorno mental, utiliza as conceituações deste último que foram estabelecidas pela Psicologia e pela Psiquiatria. Para o Direito Penal Brasileiro, o transtorno mental é ligado à razão, à capacidade de escolha autônoma e ao estado psicológico no momento da conduta.

O Brasil adota o critério biopsicológico, que leva em consideração – para penalizar ou não penalizar o indivíduo – o seu desenvolvimento mental e, em razão disso, a noção do caráter ilícito do fato ao tempo da ação ou omissão. Dessa forma, entende-se que não basta que o indivíduo possua um transtorno mental, mas também é necessário que o indivíduo não entenda a sua real conduta e nem a sua gravidade, caracterizando anormalidade de raciocínio ou sua inexistência (SILVEIRA e BRAGA, 2005).

O objetivo da medida de segurança é impedir o cometimento de novos crimes. Também visa ao tratamento do indivíduo para que este, um dia, retorne à sociedade. Há evidências de que os manicômios judiciários ou Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) não cumprem com o tratamento disposto em lei, pois estes locais são deficitários em estrutura física, medicação e profissionais. Além disso, essa custódia resulta na segregação social do indivíduo, no rompimento de laços sociais e na perda de contato familiar. Diante desse quadro, dificilmente o criminoso com transtorno mental terá a chance de ser reintegrado à sociedade sendo, na realidade, submetido à prisão perpétua e à perda de sua identidade. O destino selado para essas pessoas presas nas teias institucionais pode ser diferente, o que foi advogado por Santos, Farias e Pinto (2015) quando afirmaram que:

Há, portanto, um movimento que une os ministérios da Saúde e Justiça nesse histórico de tentativas de mudanças. Portarias recentes do Ministério da Saúde objetivam reverter parte dos encaixes das engrenagens do sistema penal que, a partir da institucionalização, sem prazo de término, condenam todos os sujeitos com transtornos mentais em conflito com a lei à morte civil e política no país (SANTOS, FARIAS e PINTO, 2015, p.1217).

Por outro lado, é importante também mencionar o fato de que muitos dos criminosos com transtornos mentais sofrem de ansiedade por conta da incerteza de como serão suas vidas em um contexto extra institucional e por se depararem com fatores motivadores de sua internação, apresentando piora de comportamento e de sintomas psiquiátricos (FERNANDES, PONTES e VENTURA, 2015). De modo complementar, o critério determinante para definir o tipo de medida de segurança nunca foi a necessidade da pessoa com transtorno mental e sim a gravidade do delito, ignorando a necessidade de se verificar qual seria o tratamento adequado para o indivíduo (PRADO e SCHINDLER, 2017).

No momento de término de cumprimento da medida de segurança é feito o exame de cessação de periculosidade pelo perito psiquiatra, que legitima a saída dos pacientes da internação. O exame de cessação, em regra, é realizado depois de transcorrido o prazo que varia de 01 a 03 anos, de acordo com o que foi fixado pelo juiz na sentença. Enquanto a periculosidade do agente não cessa, mantém-se a execução da medida de segurança, o que pode resultar na permanência de pacientes por décadas na instituição. Esse caráter restritivo da medida, sem falar na falta de infraestrutura adequada e de pessoal nessas unidades, resulta na privação de outros direitos durante longo período da vida do indivíduo (PRADO e SCHINDLER, 2017).

 

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa,com objetivo descritivo,utilizando o relato de caso único como estratégia; esta tem se consolidado como uma escolha pertinente às pesquisas qualitativas em ciências humanas e sociais, quando produz conhecimento do fenômeno estudado a partir da exploração intensa de um único caso (VENTURA, 2007). Os estudos de caso são comumente usados no campo da saúde mental (Psiquiatria, Psicologia, Psicanálise e campos afins) por permitirem as associações entre as práticas clínicas e as pesquisas empíricas (SERRALTA, NUNES e EIZIRIK, 2011).Olocal da pesquisafoi oInstituto Raul Soares(IRS),que é um serviço público de atenção à crise e atua como referência estadual para os casos provenientes de municípios que não disponibilizem um serviço especializado do tipo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).O objeto deste estudo foi o caso de um usuário internado compulsoriamente para cumprimento da medida de segurança, que foi determinada judicialmente.

A coleta de dados do prontuário foi realizada no período janeiro e fevereiro de 2021 e se constituiu como estudo aprofundado das anotações deste documento, baseadas nos registros dos atendimentos realizados nos meses de março a junho de 2019 por um dos pesquisadores (que cursava a Residência Multiprofissional em Saúde Mental) e também pelos demais membros da equipe multiprofissional. A escolha da estratégia se mostrou pertinente para responder ao problema de pesquisa no sentido de descrever e discutir o processo de interação entre os campos da saúde mental e do poder judiciário ao intervir sobre o mesmo objeto que é a medida de segurança a ser cumprida por uma pessoa, em relação com todos os demais atores de sua rede social. Esta pesquisa cumpriu todas as determinações da Resolução 466 do Conselho Nacional de Saúde, de 12 de dezembro de 2012, que versa sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, tendo sida previamente submetida e aprovada pelo Comitê de Ética institucional da FHEMIG, obtendo o parecer 4.573.303, de 04/03/2021, sob o CAAE 43054621.0.0000.5119.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Bernardo (nome fictício) nasceu em junho de 1963, é divorciado, tem 08 irmãos, 01 filha e 01 filho. Ele é natural e procedente de uma cidade do interior de Minas Gerais, onde mora junto ao filho de 29 anos, no mesmo lote em que vive a ex-esposa. Ele possui ensino fundamental incompleto e é aposentado por invalidez; afirmou ser religioso e pertencer à Igreja Católica. Bernardo é curatelado desde 2002 por uma irmã.

O usuário foi admitido no IRS no dia 22 de março de 2019 e contava 55 anos de idade à época. A internação foi solicitada pela Unidade de Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) após inquérito policial, que concluiu que ele portava e mantinha sob sua guarda arma de fogo tipo garrucha, de uso permitido, devidamente municiado com duas cápsulas e em perfeito estado, sem possuir autorização e em desacordo com determinação legal. Bernardo não foi interrogado por não possuir condições para tanto. Foi avaliado que ele se encontrava em processo de desorganização mental e, em conclusão, a perícia constatou que o réu, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento.

Dadas as circunstâncias, foi solicitado, por meio de medida judicial de urgência, a autorização para internação involuntária em instituição psiquiátrica, utilizando como justificativa evitar mal maior a si próprio, bem como à sociedade. Aqui, ficou evidenciado que a determinação da periculosidade do indivíduo infrator é, a partir de 1940, inter-setorial, quando

a Justiça reconhece a necessidade do aval da psiquiatria para a concretização de atos jurídicos. Reforça-se, assim, a aliança entre a psiquiatria forense e a Justiça brasileira em prol de uma legislação repressiva, refletida na busca qualificada de indivíduos perniciosos à sociedade da época" (SANTOS, FARIAS e PINTO, 2015, p.1221).

Desde então, a entrada da Psiquiatria no estabelecimento da medida de segurança determinou também "a emissão de laudo de cessação de periculosidade mediante avaliação psiquiátrica, marco de uma grande conquista médica" (SANTOS, FARIAS e PINTO, 2015, p.1221) e a esse fato pode ser creditada uma mudança substancial no processo de avaliação.

Como desdobramento e de acordo com os registros do prontuário, assim foi descrita a decisão da Justiça no caso aqui descrito: conversão da medida de segurança de tratamento ambulatorial em internação pelo prazo inicial de um ano, quando então, deverá ser realizada nova perícia médica.

Reportando à história do usuário, a família identificou a primeira crise psiquiátrica aos 19 anos, marcada por períodos de agitação, insônia e inadequação. Desde então, Bernardo vivenciou diversas internações em hospitais psiquiátricos. Ele permanecia estável desde a última, que ocorrera havia 07 anos e, neste período, ele fazia a gestão dos próprios medicamentos e era independente para as atividades básicas e instrumentais de vida diária.

Em conversa com a irmã, ela relatou que Bernardo havia sido uma criança "muito briguenta, não levava desaforo para casa e não tinha amigos" (Relatos colhidos da irmã de Bernardo). Ele não apresentava bom desempenho na escola e tinha dificuldade para prestar atenção às aulas; estudou somente até a 4ª série do Ensino Fundamental. Com onze anos, ele começou a trabalhar, já foi servente de pedreiro, garçom, entre outras ocupações. Aos dezenove anos, descobriu que a namorada estava grávida e teve seu primeiro surto e ficou registrado que: "nunca mais foi o mesmo" (Idem).

Depois da primeira internação, houve episódios nos quais ele ficou muitos dias sem tomar banho e sem sair de casa e outros nos quais ficava muito sorridente e saia pela cidade cumprimentando as pessoas que via na rua. A irmã contou sobre um dia em que ele saiu de casa vestindo uma roupa branca para benzer a cidade. Bernardo já agrediu membros da família. A irmã contou também que os dois filhos de Bernardo fazem acompanhamento psiquiátrico. A irmã complementou que: "quando ele está em crise fica revoltado comigo, ele acha que não tem necessidade e fica revoltado quando eu interno ele" (Idem).

Bernardo foi levado ao IRS por ambulância do município onde mora, em março de 2019, por policiais civis, para cumprimento da internação compulsória. Ele estava acompanhado do filho, que relatou que o pai havia iniciado há 01 mês delírios persecutórios ao ser chamado para avaliação de periculosidade. Ele acreditava que queriam prendê-lo e desde então parou de fazer uso das medicações; desestabilizou-se e estava ficando agressivo, errante, com discurso persecutório (principalmente com familiares) e grandioso (dizia ser major – da Polícia Militar – e que tinha muito dinheiro). Houve redução da necessidade do sono e ele passava a noite andando pela rua. O filho reportou: "ele não é de andar muito quando tá normal porque tem dor no joelho, mas quando fica assim, sai pra rua e anda o dia inteiro" (Relato colhido do filho de Bernardo). Bernardo apresentou grande resistência à ida ao hospital, ficou muito agressivo, chegando a quebrar objetos na ambulância, sendo contido e medicado.

Foi registrado que o usuário se apresentava hostil à abordagem, dizia que enfermeiros queriam matá-lo e que injetaram vermes em sua veia. Após receber a medicação, foi tranquilizando e transferido ao leito de observação e dormiu em seguida. Como foi claramente evidenciado durante a internação, os delírios e/ou alucinações, que desencadeiam no indivíduo discursos incoerentes e comportamentos indesejados como agressividade, são características de quadros psicóticos (CARVALHO, 2018). O grau de comprometimento da capacidade concreta de vida social acarretado pela psicose faz necessário que o tratamento, para além de ser um manejo dos sintomas da doença, seja um suporte existencial eficaz (TENÓRIO, 2002).

Bernardo era acompanhado pelo CAPS da sua cidade. A equipe informou que ele apresentava períodos grandes de estabilidade do quadro mental, sem intercorrências, sem queixas na família, sem faltar às consultas, quando fazia uso correto das medicações. Porém, ele as associava com o risco de ficar impotente e logo decidia por conta própria interromper o uso e, eventualmente, entrava em crise. O usuário já foi visto andando pelas ruas seminu, verborreico, querelante e risonho. O serviço reiterou a ocorrência das ideias persecutórias de Bernardo com a irmã.

Nos primeiros encontros para os atendimentos, Bernardo se apresentava falante, com discurso desorganizado e pouco compreensível, de conteúdo delirante e persecutório, místico-religioso e de grandeza. Era difícil obter informações dele. Bernardo relatava ter vários filhos, mas que nunca contou quantos eram. Nos primeiros dias de internação, ele sempre pedia lápis e papel e escrevia muito. Ele falava sobre uma guerra entre as pessoas boas e as pessoas más, em diversos momentos parecia se vangloriar das agressões cometidas, falando que pessoas que o fizeram mal tiveram sua lição. Em seguida, ele falava sobre o desejo de ir para sua casa, não tinha consciência da decisão judicial e não mostrava qualquer implicação com o delito cometido, no que se referia a assumir qualquer reponsabilidade.

Bernardo demonstrava desconfiança ao ser medicado, analisava os comprimidos e fazia rituais com estes antes de ingeri-los (passava-os por debaixo de um terço católico que usava) e questionava para que serviam. Em atendimento, ele disse que os medicamentos estavam lhe fazendo mal: "me comendo por dentro" (Relato de Bernardo), mas não apresentava resistência para aceitá-los.O usuário referia que fazia uso da medicação antes da internação, porém não se lembrava os nomes dos medicamentos.

Após uma semana de internação, Bernardo ainda apresentava desorientação alopsíquica e dizia estar sofrendo punição por ter denunciado o prefeito da cidade e falava de sentimentos negativos referentes aos membros da família, quando persistia o discurso delirante e a demanda pela alta. Ele dizia que precisava sair logo, pois estava com um bilhete premiado da loteria mega sena e precisava resgatar.

Em sequência, junto com o usuário, foi feita a leitura da determinação do Ministério Público. Ele ficou surpreso quando foi explicado que não seria permitido andar pela cidade portando arma de fogo e, então, disse que o juiz e outros profissionais que assinaram os papéis são pessoas que não gostavam dele e ainda culpava a irmã pela internação. Quando questionada a sua opinião sobre a medida, ele respondeu: "preciso de liberdade" (Relato de Bernardo).

Com o passar dos dias, tendo em vista a maior organização psíquica do usuário, a leitura da determinação foi feita novamente, em alguns momentos distintos. Bernardo foi capaz de compreendê-la e ainda de elaborar os riscos de portar uma arma de fogo. Ele se queixava muito da irmã e que demonstrava o desejo de transferir a curatela para o seu filho; dizia que ele era responsável e honestoe, como moravam juntos, teria acesso mais fácil ao seu dinheiro. Ele contava que era ele mesmo quem cuidava da casa, fazia as compras, limpava e organizava. Depois, ele pediu que fosse feita uma conversa com a assistente social do CAPS sobre a transferência da curatela. Algumas semanas depois ele elaborou, com ajuda, uma carta de próprio punho, solicitando ao juiz a mudança.

Nas primeiras semanas foram feitas diversas tentativas de contato com a família, sem sucesso, o que deixava Bernardo muito angustiado. Quando conseguiu falar com o filho pela primeira vez, ele perguntou sobre seus documentos, sobre os cachorros e se o filho estava empregado. Disse que ficou aliviado depois dessa ligação. Bernardo evoluiu com melhora gradativa do quadro e, no final de abril, estava com discurso organizado, eutímico e não trazia aos encontros as ideias delirantes com a ênfase dos atendimentos anteriores.

Na primeira semana de maio foi iniciado contato com a comarca para conversar sobre a possibilidade de antecipação da perícia e o serviço orientou sobre o envio de relatório médico por correio. No dia 29 de maio de 2019 foi enviado um relatório multiprofissional ao poder judiciário. Este pedido foi ancorado no cálculo clínico da equipe de que o prolongamento da internação sem amparo em razões clínicas não promovia avanços no caso e, ao contrário, contribuía para fazer emergir ou reeditar os sintomas de sofrimento no indivíduo, especialmente a angústia e a ansiedade. Segundo Mota e Guedes (2018), no artigo que discutiram o projeto clínico-institucional do IRS:

Não se pode falar de um trabalho clínico e ético em um contexto onde a pobreza do discurso manicomial encontra-se assentada. Uma prática clínica deve operar no sentido contrário ao da exclusão, uma prática que possa produzir um coletivo de grande expressividade, constituído pela articulação de diversas singularidades entre si, em que o sujeito possa sustentar a sua diferença sem precisar ser excluído do social, possibilitando a diferença como tal: fazê-la caber. Uma prática na qual se deve manter uma interlocução interdisciplinar entre grupos de trabalho de dentro e de fora do hospital, em que se deve manter atenção às novidades que as diversas categorias profissionais trazem ao debate e que devem integrar-se a uma elaboração técnica rigorosa e articulada com o pensamento contemporâneo (MOTA e GUEDES, 2018, p. 375).

Foi discutido em equipe e com a direção sobre a possibilidade de convidar Bernardo para o desfile do dia da luta antimanicomial, no dia 18 de maio, que é um evento tradicional em Belo Horizonte, de frequência anual, com participação de funcionários, usuários e familiares que apoiam o tratamento mais humanizado aos usuários da rede de saúde mental. Ele aceitou o convite prontamente. Foi consenso na equipe que seria benéfico para ele participar da atividade, que foi entendida como espaço de sociabilidade e exercício da cidadania, com plena congruência aos princípios da reabilitação psicossocial (AMARANTE, 2007). Foi feita uma longa conversa sobre o movimento e ele demonstrou entusiasmo em participar do evento. Durante o evento, ele permaneceu com o grupo durante todo o tempo, fez perguntas sobre os locais por onde passava e elogiou a organização do ato. O usuário agradeceu diversas vezes pela oportunidade de participar e disse que foi um marco em sua vida.

Bernardo sempre participava de oficinas dentro do serviço e, nas primeiras semanas, era necessário mediar a sua participação, pois ele apresentava fala acelerada e dificuldade para respeitar a vez do outro e, além disso, não elaborava as atividades propostas. Com o passar das semanas, verificou-se a melhor participação nas atividades e ele conseguiu confeccionar sua fantasia para o desfile do 18 de maio. Em uma oficina de contos, o usuário contribuiu com sua percepção sobre as histórias contadas, fez reflexões sobre sua internação no IRS, se referindo à liberdade como algo precioso e não valorizado por ele anteriormente; falou sobre seu desejo de retornar para a família, demonstrando expectativa com relação ao seu processo judicial.

Confirmou-se que os espaços de escuta, em grupo e individuais, são necessários para os projetos terapêuticos. De modo complementar, os familiares precisam ser convidados a propor e participar das estratégias terapêuticas a serem incluídas no projeto. Bernardo demandava atendimentos e neles falava sobre sua trajetória de vida, incluindo os momentos de crise. Certa vez, ele disse que às vezes sentia uma energia muito potente dentro de si e que nesses momentos tinha atitudes impensadas. O trabalho da equipe continuou a ser orientado pela subjetividade – o discurso do usuário – mas também pela (re)construção dos laços possíveis; nessa direção, é pertinente a leitura de que para a instituição:

É na perspectiva do trabalho em rede e pela aposta do caso deslizando por ela que compreendemos o IRS como um lugar de passagem, pontual, ligeiro, acolhedor, mas sem causar aderência, sem se concentrar em si mesmo e sem se autorreferenciar, mantendo-se em um movimento constante de esvaziamento, fazendo da sua porta de entrada uma porta-giratória. O nosso orientador para o projeto institucional do IRS é a palavra, e a nossa causa, o laço com o território, com a rede, com a cidade, para a vida do sujeito falante (MOTA e GUEDES, 2018, p. 377).

Com o passar do tempo, Bernardo começou a falar sobre angústia e tristeza, devido ao tempo da internação e disse: "eu precisava ser internado, mas não precisava ser com ordem judicial" (Relato de Bernardo). De acordo com ele, a última crise foi desencadeada devido ao não uso da medicação, mas os conflitos com a irmã teriam piorado a situação, deixando-o nervoso. Ele explicou que a família o trata como um adolescente e que fica irritado quando mentem para ele ou quando não escutam o que ele tem a dizer.

A equipe percebeu que a demora da resposta judicial afetava significativamente a construção do caso, no sentido de que provocava as instabilidades no indivíduo e gerava nele desconfiança quanto ao interesse e empenho, e mesmo à competência dos profissionais. Esse foi o disparador para que novas abordagens fossem rapidamente introduzidas, pois a equipe não desejava o retrocesso, depois dos avanços que haviam sido conquistados. No dia 24 de junho de 2019, quase 01 mês depois de enviado o relatório, o hospital recebeu a resposta do TJMG contendo determinação judicial de "reconversão da medida de segurança de internação para tratamento ambulatorial". Após o contato com os serviços da cidade de origem, a Secretaria de Saúde, em articulação com o setor de transportes daquela cidade, entrou em contato para agendar a data de retorno de Bernardo. A família e o CAPS já estavam cientes da decisão e ele foi logo informado sobre a determinação judicial.

Ao final da permanência no serviço, o usuário já mantinha estabilidade completa do quadro clínico. Ele se encontrava com boa interação com outros internos e com a equipe. Apresentava-se organizado, com exame do estado mental dentro da normalidade. No momento da alta hospitalar, o usuário agia de modo cooperativo, ciente do acompanhamento ambulatorial e da necessidade do uso correto das medicações. Ele agradeceu a toda a equipe e elogiou o hospital e disse que: "aprendeu a lição'' (Relato de Bernardo), sem supor que, em última análise, a instituição é quem aprende uma nova lição a cada desafio trazido pelos casos.

 

CONCLUSÃO

O tratamento involuntário esteve fortemente presente em toda a história de construção dos saberes e práticas em saúde mental, desde o mito fundador da psiquiatria clássica, com Pinel, até as atuais modelagens assistenciais inauguradas pelos movimentos reformistas da segunda metade do século XX. No Brasil, pode-se considerar que a proposta da Reforma e os serviços dela derivados forjaram um novo compromisso ético fundamental com a produção da atenção em saúde mental, que se sustenta pela defesa do cuidado em liberdade. A medida de segurança, por definição, obscurece esse princípio norteador e é, por isso, que não se pode prescindir do debate sobre um aspecto tão contraditório, ainda que ele evoque posicionamentos díspares na sociedade.

O relato deste caso apresentou a discussão sobre o que foi levado em conta para determinar o prazo de internação no hospital psiquiátrico e demonstrou que as altas têm um timing exato na qual devem ocorrer, pois a permanência na instituição de saúde, para aqueles que já se encontram em pleno estado de funcionamento mental, pode acarretar o efeito reverso, ou seja, a internação pode culminar em mais adoecimento mental. As internações compulsórias estão sob a autoridade do poder judiciário, mas as altas, como decisão clínica, são atribuição da equipe de saúde (e do médico), que acompanham o indivíduo diariamente e pode informar com propriedade o estado mental no qual ele se encontra.

Retomando o objetivo desta pesquisa, que foi relatar o cumprimento de medida de segurança nas interfaces entre a saúde mental e o poder judiciário, pode-se afirmar que ele foi alcançado, quando descreveu a construção do caso clínico pela equipe baseada na busca da compreensão pelo indivíduo sobre o ato praticado e suas consequências, no sentido da responsabilização, mas também quanto ao ajustamento da punição, dada pela medida de segurança, à gravidade do ato. Apesar do papel central do médico psiquiatra, reforçado pelo ato da perícia, o caso revelou a importância do trabalho multidisciplinar para o desenvolvimento do projeto terapêutico e para o processo de elaboração do ato e de suas consequências pelo usuário.

Com o estudo das intervenções propostas neste caso, foi possível concluir que é necessária a maior integração entre os campos envolvidos: Saúde Mental e Poder Judiciário, o que já tem ocorrido em Minas Gerais pelo trabalho do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ). No entanto, ainda precisam ser discutidas medidas alternativas que possam finalmente incluir as pessoas internadas com a motivação judicial no mesmo rol de todas as outras afetadas pelos avanços da RPB.

Ao jogar luzes sobre um tema pouco explorado e menos presente na literatura do campo da saúde mental, este estudo revelou aspectos que merecem continuar sendo investigados em estudos futuros, tais como a inclusão da família em todo o processo terapêutico e a criação de canais de comunicação mais ágeis e efetivos com o poder judiciário. Por se tratar de um estudo de caso único não é possível a generalização dos resultados para todas as populações que vivenciam a mesma realidade.

 

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1. Agradecemos aos usuários e aos seus familiares pelo consentimento e participação nesta pesquisa. Aos profissionais da equipe multidisciplinar, pela brilhante construção do caso clínico e pelas sugestões para a discussão e escrita do artigo. À terapeuta ocupacional Edna Mara Mendonça, pela participação na banca de defesa do trabalho de conclusão e pelas valiosas sugestões.

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