ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Do desencadeamento psicótico à retomada do laço social: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como dispositivo estratégico

From the psychotic triggering to the return to the social link: the Psychosocial Care Network (RAPS) as a strategic device

Del desenganche psicotico al retorno del vinculo social: la Red de Atención Psicosocial (RAPS) como dispositivo estratégico

Maria Augusta do Nascimento Oliveira

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v14n26.0004

Bacharela em Psicologia pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC Campus Barbacena. Pós-graduada em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pelo Centro Universitário Estácio de Sá de Juiz de Fora. Servidora Pública Municipal do quadro efetivo do município de Viçosa - MG, lotada no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas

Resumo

A estrutura clínica da psicose tem colocado novos desafios à saúde mental na atenção psicossocial, sobretudo no que tange a particularidade dos sujeitos psicóticos em se colocarem no mundo. Entender as especificidades destes como o que são, destinos subjetivos possíveis, modos diferentes - não déficits - é condição sine qua non para a atenção em saúde mental. Diante do exposto, e em conformidade com o saber analítico, considera-se contraproducente negar as diferenças, devendo, pois, reconhecê-las e respeitá-las de modo que essas circulem e falem em nome próprio. A RAPS aparece como importante recurso para que essa condição seja efetivada na medida em que sua aposta seja a de superar a cultura do isolamento e modificar as relações da sociedade com o diferente, promovendo vínculos, o exercício de direitos e o fortalecimento de laços que se configuram como uma fundamental direção no cuidado em saúde mental.

Palavras-chave: Psicose; Atenção psicossocial; RAPS; Vínculos; Direitos.


Abstract

The clinical structure of psychosis has posed new challenges regarding psychosocial attention to mental health, especially concerning the particularity of psychotic subjects in placing themselves in the world. Understanding the specificities of these as what they are, possible subjective destinations, different modes - not deficits - is a sine qua non condition for mental health care. With that in mind and in accordance with analytical knowledge, it is considered counterproductive to deny the differences but should therefore recognize and respect them so that they circulate and speak in its own name. The Brazilian Psychosocial Care Network (RAPS) appears as an important resource for this condition to be made effective insofar as its objective is to overcome the culture of isolation and modify the relations of society with the different, promoting bonds and the exercise of rights that are configured as a fundamental direction in mental health care.

Keywords: Psychosis; Psychosocial attention; RAPS; Bonds; Rights.


Resumen

La estructura clínica de la psicosis ha planteado nuevos desafíos a la salud mental en la atención psicosocial, sobre todo en lo que se refiere a la particularidad de los sujetos psicóticos en colocarse en el mundo. Entender las especificidades de éstos como lo que son, posibles destinos subjetivos, modos diferentes - no déficits - es condición sine qua non para la atención en salud mental. En vista de lo anterior, y de acuerdo con el conocimiento analítico, se considera contraproducente negar las diferencias, por lo que conviene reconocerlas y respetarlas para que circulen y hablen en su propio nombre. La Red de Atención Psicosocial (RAPS) aparece como un importante recurso para que esa condición se efectúa en la medida en que su apuesta es la de superar la cultura del aislamiento y modificar las relaciones de la sociedad con lo diferente, promoviendo vínculos, el ejercicio de derechos y el fortalecimiento de lazos que se se configuran como una fundamental dirección en el cuidado de la salud mental.

Palabras clave: Psicosis; Atención psicosocial; RAPS; Lazos; Derechos

 

INTRODUÇÃO

O cuidado às pessoas com transtornos mentais e necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas no Brasil segue as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Saúde Mental apoiada, primordialmente, na lei 10.216/01 e demais disposições legais a ela correlatas. Após 12 anos de tramitação no Congresso, a lei Paulo Delgado, como ficou conhecida, foi aprovada no ano de 2001 e "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental" (BRASIL, 2001). Apesar disso, a Reforma Psiquiátrica Brasileira não data deste período. Desde o final da década de 70, mobilizações sociais, sobretudo com a participação de profissionais de saúde mental, familiares e pessoas com transtornos psiquiátricos "impulsionaram o processo de desinstitucionalização psiquiátrica no Brasil, seguindo a influência de outros países, principalmente os da Europa" (BARROSO e SILVA, 2011, p. 66). A principal aposta foi na substituição gradativa dos leitos psiquiátricos e da lógica asilar - característicos do modelo biomédico - por dispositivos de cuidado de base comunitária fundamentados na perspectiva da atenção psicossocial, como os CAPS, criados pela Portaria nº 224/1992 e, posteriormente, ampliados pela Portaria nº 336/2002 e os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), instituídos pela Portaria nº 106/2000. Tais dispositivos foram assentados sob a óptica da reabilitação psicossocial por meio da promoção de vínculos, fortalecimento dos laços e exercício dos direitos, tendo na inserção na vida comunitária o principal recurso para sua efetivação. Em 2011, com a aprovação da Portaria nº 3.088, foi instituída a "Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde" (BRASIL, 2011), com a finalidade de ampliar e articular os pontos de atenção contínua e integrada a esse público específico. Mesmo com os avanços conquistados pela Reforma ao longo dos anos, alguns dos principais desafios têm sido a luta para a efetivação da lógica antimanicomial e a constante iminência de retrocessos ao modelo hospitalocêntrico. Recentemente, com a promulgação da Nota Técnica nº 11/2019 e demais portarias a ela atinentes, sobretudo a nº 3.588/2017, que vão de encontro ao que foi preconizado e construído ao longo de, pelo menos, quatro décadas de Reforma Psiquiátrica Brasileira, as políticas voltadas à desinstitucionalização foram postas em xeque com a inclusão do hospital psiquiátrico especializado dentre os pontos de atenção da RAPS, ameaçando a base sobre a qual está assentada toda a lógica contrária ao paradigma asilar. É preciso, pois, um constante movimento instituinte de questionamento do paradigma e das práticas manicomiais para que a desinstitucionalização se efetive e não seja reduzida à mera desospitalização, considerando, também, aquilo que da instituição restou no sujeito institucionalizado. Isso implica alcançar a dimensão na qual os acordos subentendidos se transformam em comportamento habitual, ou seja, aquilo que tendo sido repetido várias vezes foi internalizado pelo sujeito ao ponto de este não saber distinguir o que é seu, uma prática própria e o que é da instituição. Isso significa que, segundo Amarante (2007), mais do que extinguir manicômios, sejam extintas as práticas manicomiais que segregam, aprisionam e excluem os indivíduos e a sua subjetividade, de modo a evitar a reprodução da lógica anterior e o deslocamento das práticas hospitalares para o interior dos serviços. "A mudança na lógica de cuidados traz consigo novos riscos e aprisionamentos a serem continuamente analisados. Em formas de tratamentos não manicomiais, a prática do controle pode se mascarar" (EMERICH et al., 2014, p. 687) e "a série doença mental-tutela-manicômio, embasada na tutela dos corpos do sistema hospitalocêntrico, pode ser substituída pela série doença mental-controle-serviços abertos" (EMERICH et al., 2014, p. 691). Assim, como trazem Dimenstein et al. (2010, apud QUINDERÉ et al. 2014), "a produção do cuidado em saúde mental fundamentada no acolhimento, no vínculo e na responsabilização requer o enfrentamento dos problemas em relação ao modo de funcionamento dos serviços substitutivos e da rede de saúde de uma forma geral" (p. 267). Em outras palavras, a Reforma Psiquiátrica não deve ser entendida apenas como mera reforma administrativa, mas como um complexo e amplo movimento social que favoreça e amplie as possibilidades de efetivação de um novo modelo de atenção que não se limite à redução de leitos ou à criação de serviços comunitários, mas que consiga, efetivamente, superar a cultura do isolamento e modificar as relações da sociedade com esse sujeito, e é justamente nesse ponto que a RAPS faz-se presente com a sua potencialidade para promover vínculos, o exercício de direitos e o fortalecimento de laços que se configuram como a fundamental direção no cuidado em saúde mental e na atenção (não segregação) aos diferentes. Segundo Saraceno (2011) "o problema da diversidade não se resolve criando espaços concretos e metafóricos para isolar, separar, aniquilar" (p. 98), mas respeitando essa diversidade, e para isso é preciso conhecer as diferenças. Contudo, quando se trata das psicoses especificamente, o desafio em efetivar tais direcionamentos, sobretudo em relação ao estabelecimento de vínculos, parece ainda maior. O estigma e o preconceito sofridos pelos usuários e que tanto dificultam as relações, se dão, muitas vezes, em decorrência do desconhecimento acerca da estrutura psicótica. Destarte, o combate àqueles é, apropriadamente, uma das principais diretrizes para o funcionamento da RAPS. Além disso, segundo Lacan apud GUERRA (2010), "não devemos recuar diante da psicose, mas, antes, aprender com ela a reconhecer seu estilo e suas saídas" (p. 8).

 

MÉTODOS

O método utilizado para o desenvolvimento da investigação acerca da psicose e da RAPS como dispositivo em saúde mental foi a pesquisa bibliográfica, mediante a revisão teórica dos referenciais existentes. Foram levantados artigos científicos recentes que traziam, dentre as palavras-chave, significantes pertinentes ao estudo proposto, tendo sido obras de autores que propõem discussões teóricas de grande contribuição ao tema em questão, além de normativas legais que regulamentam a assistência à saúde mental no Brasil, como a Lei nº 10.216/2001 e as Portarias nº 3.088/2011 e posterior – nº 3.588/2017. A temática da psicose, especificamente, traz em si uma ampla gama de possíveis vertentes a serem estudadas. No entanto, é importante ressaltar que a esse estudo interessaram as perspectivas voltadas à contribuição da psicanálise acerca do tema proposto. Desse modo, apesar de pertinentes e relevantes para a compreensão da psicose, as outras abordagens teóricas bem como suas implicações não foram postas em questão. Desta forma foi estruturado o presente artigo embasado na revisão bibliográfica dos materiais consultados.

 

RESULTADOS

A partir do levantamento de informações da revisão bibliográfica é possível inferir que a RAPS e seus dispositivos, apesar dos riscos e retrocessos atinentes às recentes portarias, ainda se constituem como estratégias privilegiadas por se sustentarem em um paradigma que aposta na proximidade com a comunidade e no favorecimento da promoção dos laços sociais. O estudo de autores e obras que são referências no que tange o tema investigado mostra, também, que a questão do tratamento em meio comunitário esbarra em dificuldades muito mais complexas do que apenas a criação de espaços para que a diferença possa circular. Mais do que isso, as fontes consultadas evidenciaram a necessidade de alterar o imaginário social construído em torno da psicose como condição sine qua non para a efetivação de outras mudanças fundamentais na assistência em saúde mental.

 

DISCUSSÃO

A psicose sob a perspectiva psicanalítica: breves considerações

A estrutura da psicose tem despertado particular interesse no campo da saúde mental. Tal interesse deve-se às formas – igualmente singulares – dos sujeitos psicóticos se posicionarem no mundo. Longe de um déficit, orienta Lacan apud Guerra (2010), a psicose é apenas uma resposta diferente do sujeito diante do impasse colocado pela castração. "Compreender a estrutura psicótica e as soluções nas psicoses auxilia a elucidar, com mais crítica, a diferença, e não a deficiência, desses sujeitos" (GUERRA, 2010, p. 11). Isso significa que a psicose trata de um peculiar "estilo que o sujeito busca para tratar seus impasses subjetivos" (GUERRA, 2010, p. 10). Essa peculiaridade dialoga diretamente com uma das principais diretrizes para o funcionamento da RAPS que, em seu inciso VI do Art. 2º traz a premissa da "diversificação das estratégias de cuidado" (BRASIL, 2011), corroborando que não existe apenas uma estratégia e tampouco apenas um tipo de sujeito.

Segundo Guerra (2010), Freud

concebe o aparelho psíquico como alimentado pelo afeto, investido nas representações. As representações das coisas são aquelas que se encontram como registro no sistema inconsciente. Do investimento energético nas representações que as coisas ganham no aparelho psíquico, somado ao investimento das representações das palavras, constitui-se a representação do objeto, utilizada pelo pensamento lógico, consciente e racional, e pela linguagem. Lidamos com as representações de objeto ao falarmos e ao nos expressarmos. (GUERRA, 2010, p. 13).

Nas neuroses, essa operação de investimento na representação das coisas ligadas com a representação da palavra correspondente é feita de modo que, "como seu resultado, no inconsciente, permanece apenas a representação da coisa do objeto" (GUERRA, 2010, p. 14). Dessa forma, o conteúdo aflitivo é recalcado e, assim, mandado para o inconsciente, onde produz derivados. Esse recalcado "retorna, de maneira substitutiva, sob a forma de sintoma, seja no corpo, seja no pensamento, seja na forma de angústia" (GUERRA, 2010, p. 15). Observa-se então, na neurose, a operação do recalque, que tem como resultado a formação sintomática que, por sua vez, é ligada ao conteúdo originalmente recalcado por um laço simbólico capaz de favorecer a vinculação do afeto à sua representação, tornando possível que exigências pulsionais recalcadas sejam "substituídas pela satisfação obtida com a fantasia inconsciente" (GUERRA, 2010, p. 15) e ligando a libido a objetos na fantasia.

Na psicose, entretanto, não há mediação simbólica. Nessa estrutura, a relação entre as representações inconscientes e conscientes do objeto se dispõem de uma maneira muito própria e singular: "o investimento das representações de palavras é retido" (GUERRA, 2010, p. 15), resultando na rejeição da representação da coisa do objeto. Tem-se, então, a operação de rejeição e como consequência um "superinvestimento nas representações das palavras como forma de suprir a não inscrição das representações das coisas no inconsciente" (GUERRA, 2010, p. 13), o que leva a serem tomadas como coisas as palavras, obrigando o sujeito a contentar-se com elas. Dito de outro modo, ao invés do recalque característico das neuroses, "o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. A partir do momento em que isso ocorre, temos uma psicose" (GUERRA, 2010, p. 14).

Em suma, Freud (1894 apud QUINET, 1997), em seu artigo "Psiconeuroses de defesa", afirma "que existe na psicose uma espécie de defesa muito mais enérgica e eficaz que na neurose. Esse mecanismo consiste no seguinte: o eu rejeita (Verwerfung), a representação insuportável como se esta jamais tivesse alcançado o eu" (p. 4). "Trata-se da negação da realidade mesma da percepção ligada à representação incompatível" (GUERRA, 2010, p. 15).

Assim, a libido não permanece ligada a objetos na fantasia a exemplo da neurose. No caso da psicose, como consequência dos efeitos subjetivos da operação de rejeição que resultam no desinvestimento libidinal decorrente de seu modo peculiar de estruturação, "a energia libidinal se volta para o corpo na esquizofrenia (autoerotismo), para o Outro na paranoia (narcisismo primário) e se dispersa no eu, escoando-se, pela identificação ao objeto perdido, na melancolia" (GUERRA, 2010, p. 17). Em qualquer dos casos, porém, há a "perda na relação com a realidade externa e posterior construção de uma saída diante dessa perda, seja pela fantasia, na neurose, seja pelo delírio, na psicose" (GUERRA, 2010, p. 18). É preciso observar, então, que há a "perda da realidade na neurose e na psicose. Porém, o que vai fazer toda a diferença entre a neurose e a psicose é o fato de que na psicose um fragmento da realidade rejeitada retorna sem parar, para forçar a abertura na vida psíquica" (QUINET, 1997, p. 6). Contudo, o retorno daquilo que foi rejeitado ou, nos termos de Lacan, foracluído1

1Conceito forjado por Jacques Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, pelo qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito. No Brasil também se usam "forclusão", "repúdio", "rejeição" e "preclusão" (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 245).

, na psicose, não é o mesmo que o retorno daquilo que foi recalcado na neurose. Destarte, a diferença entre a neurose e a psicose não reside no rompimento com a realidade visto que, em ambos os casos, ela está presente, mas no caminho próprio encontrado por cada um para restaurá-la. Isso demonstra que "a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento e não a enfermidade propriamente dita" (GUERRA, 2010, p. 22). Assim, "não é de déficit que se trata na psicose, mas de produção de resposta" (GUERRA, 2010, p. 23):

a construção de seu mundo interno, realizada através do trabalho delirante que se presumia ser o produto patológico, é, na realidade, para Freud, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução, ainda que nunca completamente bem-sucedido. Ou seja, onde supúnhamos a patologia, desenrola-se a cura (GUERRA, 2010, p. 23).

O que acontece, então, quando as saídas encontradas pelos sujeitos psicóticos, longe de favorecerem, colocam-se como obstáculos à possibilidade do laço social? Quando os caminhos tomados pelos sujeitos em sofrimento, na busca de sua estabilização, comprometem os vínculos criados ou impedem que estes sejam estabelecidos? Muitas vezes, por diferentes razões, a violência com que o sujeito se manifesta é de tal ordem que não deixa espaço para a possibilidade do vínculo. Isso ocorre com a chamada passagem ao ato que, "longe de favorecer o enlaçamento social do sujeito, o destrói" (GUERRA, 2010, p. 22). Mas por que isso ocorre? Sabe-se que, na neurose, o afeto é separado de sua representação através da operação de recalque, o que resulta na formação sintomática que, através de um laço simbólico, continua a manter certa vinculação entre o afeto e a sua representação. Na psicose, a ausência dessa mediação simbólica, que resulta na foraclusão do Nome-do-Pai1, mecanismo específico dessa estrutura, impede que aconteça o mesmo. Algo semelhante se dá entre o significado e o significante. "Do ponto de vista psicanalítico, o significante não está colado a um significado, como aparece no dicionário. Ao contrário, há uma separação radical entre significante e significado, que é assinalada pela barreira resistente à significação que pode ser identificada ao próprio recalque" (QUINET, 1997, p. 7). "O afeto está, portanto, ligado à sua representação, como o significante o está ao significado" (TOUSSEUL, 2012, p. 240). Sendo assim, se na psicose não há mediação simbólica que forneça a vinculação entre afeto e representação, tampouco há para conectar significante e significado. O efeito disso é uma "relação particular do sujeito com o significante" (QUINET, 1997, p. 3-4), marcada por uma carência do mesmo. Segundo Zimerman,

nos indivíduos em que a capacidade de formação de símbolos tenha ficado seriamente prejudicada, a palavra pode estar sendo utilizada a serviço das "equações simbólicas". Esta expressão designa uma condição na qual o pensamento, e daí as palavras, adquire uma concretude mágica e se confunde como se, de fato, fossem as coisas que apenas deveriam representar (ZIMERMAN, 2000, p.20).

O resultado dessa carência simbólica retorna como gozo no real do corpo. É como se o sujeito tentasse alcançar, por meio do real, o mesmo efeito que o simbólico conseguiria mediado pela linguagem. Em outras palavras, o sujeito apresenta um "modo particular de articulação dos registros do real, simbólico e imaginário" (QUINET, 1997, p. 3), ou seja, diante do real – e na incapacidade de mediação simbólica e de representação, resultante da não inscrição na cadeia de significantes decorrente da foraclusão do nome-do-pai – o sujeito passa ao ato. É como uma tentativa de inscrição que leva o sujeito a operar, pelo real, a restituição da função paterna que deveria ter sido operada pelo simbólico. É uma substituição do falar pela ação. Em outros termos, "aquilo que foi abolido internamente retorna desde fora" (GUERRA, 2010, p. 23-24): "retorno do gozo no corpo (esquizofrenia), retorno do gozo no Outro (paranoia) e perda permanente de gozo através do eu (melancolia)" (GUERRA, 2010, p. 21).

Os psicóticos, porém, podem construir outras diferentes estratégias em direção à estabilização que, diferentemente da passagem ao ato, favorecem o laço social. Assim sendo, a psicose oferece caminhos complexos e variados de tratamentos possíveis. Lacan, ao descrever as diversas possibilidades de saídas encontradas pelos sujeitos na psicose, localizou, além da passagem ao ato, as sublimações criadoras e o trabalho delirante, já descrito anteriormente por Freud (GUERRA, 2010). Além dessas, identificou que a própria transferência pode, caso a caso, ser utilizada como meio de favorecer a estabilização. A diferença é que "a sublimação criadora, por seu turno (...) faz pacto, laço, sentido para o campo social" (GUERRA, 2010, p. 41) e a transferência, quando corretamente manejada, evitando o adensamento que pode comprometer o tratamento, "favorece o vínculo do sujeito a uma pessoa ou a um serviço de atenção, abrindo a possibilidade da circulação social e do enlace simbólico" (GUERRA, 2010, p. 41). É importante compreender que, quaisquer que sejam, os vários caminhos encontrados pelos psicóticos seguem na trilha de sua estabilização e, por isso, é fundamental subverter o pensamento de que o delírio é apenas um sintoma para pensar neste como uma solução, ou seja, "um movimento do psicótico em direção à estabilização" (GUERRA, 2010, p. 12). Somente diante dessa concepção que coloca as psicoses no campo da estabilização e não da (des)estabilização que se pode pensar nas possibilidades de laços a serem criados e estratégias/serviços a serem ofertados.

Psicose e laço social: a RAPS como estratégia privilegiada

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi instituída pela Portaria nº 3.088/2011 e "propõe uma estruturação do modelo de cuidados em saúde a partir de ações da atenção básica em um desenho ampliado, convocando a participação de diferentes equipes para um trabalho articulado" (MOREIRA e ONOCKO, 2017, p. 463) do qual participam diversos equipamentos que vão desde a atenção primária àquela mais especializada. Diferentemente da lógica manicomial proposta pelo modelo biomédico, a RAPS preconiza a assistência pelos dispositivos de cuidado de base comunitária, fundamentados na perspectiva da atenção psicossocial. Isso significa que a RAPS reforça as potencialidades dos territórios e atribui protagonismo ao meio comunitário, o que "possibilita articulações com os múltiplos setores da sociedade e ajuda a desconstruir a ideia segundo a qual a pessoa com transtorno mental precisa ser cuidada apenas num espaço restrito a ela" (QUINDERÉ e JORGE, 2010 apud QUINDERÉ et al. 2014, p. 267), o que reforça a importância dos vínculos e dos laços sociais para a eficácia na condução do tratamento de seus usuários e na necessária modificação das relações da sociedade com os mesmos, sobretudo no que diz respeito aos psicóticos com os quais as possibilidades de estabelecimento de vínculos encontram alguns obstáculos, especialmente no que tange a chamada dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica.

Segundo Guerra (2010), essa condução da intervenção na psicose deve seguir, antes de tudo, "os caminhos que o próprio sujeito encontra para tratar daquilo que escapa na sua condição de ser falante" (p. 25). Desse modo, pode-se consentir que o rumo do tratamento na psicose deva se orientar pela escuta das "produções dos psicóticos para delas extrair a direção para seu tratamento possível" (GUERRA, 2010, p. 9). Isso significa direcionar o tratamento rumo à elaboração pelos próprios sujeitos das saídas que estes podem construir, processo esse que pode ser facilitado ou dificultado pelo meio social, a depender de como o mesmo se coloca frente à questão da psicose. É nesse sentido que a RAPS, enquanto rede, além de favorecer as trocas entre comunidade e usuário, ainda se coloca como locus privilegiado de construção coletiva de possibilidades, favorecendo a pactuação entre profissionais, familiares e usuários em direção ao cuidado orientado ao protagonismo dos últimos. Um dos maiores problemas, no entanto, consiste na manutenção da lógica escolar de transmissão de conhecimentos que concebe a prática como um lugar isolado de aplicação dos conhecimentos especializados, produzindo certa distância entre a prática e o saber e uma consequente "desconexão do saber como solução dos problemas da prática" (DAVINI, 2009, p. 44). Isso significa a adoção, muitas vezes, de certa lógica que pressupõe o saber-poder daqueles que conhecem. Romper com essa lógica não significa romper com o conhecimento acerca das psicoses. Longe disso, significa trazer à tona uma perspectiva que conceba o serviço não como um mero lugar de aplicação desses conhecimentos, mas como um lugar de produção dos mesmos, colocando os profissionais e usuários como construtores do saber, ao invés de meros receptores e reprodutores daqueles. Em outras palavras, o que se prega é "a necessidade de gerar conhecimento útil, mas sempre vinculado ao contexto em que a ação se desenvolve e às particularidades daqueles a quem se presta o serviço, o que não significa que qualquer prática serve em qualquer situação ou contexto" (DAVINI, 2009, p. 48).

Essa perspectiva vai mais além: implica em suspender a concepção de que se sabe o que é melhor para o sujeito. A partir do questionamento dessa concepção tão cristalizada pela valorização exacerbada de um status de suposto saber adquirido em um determinado momento da trajetória e que vem sendo reforçado pela própria sociedade na medida em que legitima essa supervalorização do modelo biomédico, é possível dar espaço ao próprio sujeito, colocando em evidência a sua maneira singular de elucidar as próprias questões. Trata-se, segundo Tenório e Rocha (2006), de "localizar o trabalho e a posição do sujeito no quadro clínico" (p. 111) em detrimento de reduzir o tratamento à remissão dos sintomas, o que implica a valorização do saber do sujeito acerca da sua condição e, sobretudo, seu protagonismo frente ao próprio tratamento. Quando se fala em saúde mental e, mais especificamente, da peculiaridade do campo das psicoses, essa proposta é ainda mais coerente.

Segundo Guerra (2010), "orientar-se pelo estilo de construção de respostas de cada sujeito é o vetor que orienta a clínica das psicoses" (p. 21). Essa é, sem dúvida, uma aposta arriscada. "O conhecimento na ação é uma forma de fazer e dar ênfase ao que não se sabe (...) e permite questionar o conhecimento prático e refazer a própria ação que conduz a uma situação não esperada; a reflexão abre caminho para a experimentação de outras ações" (DAVINI, 2009, p. 50). A proposta, então, é superar esse obstáculo com vista à adoção de um novo paradigma, fruto de uma visão de que o conhecimento não apenas se transmite, mas também se constrói a partir das práticas e fazer com que a saúde deixe de ser arbitrada por quem se supõe que saiba. Sendo assim, é imprescindível considerar o próprio conceito da prática no serviço enquanto

espaço não neutro, com regras de jogo instaladas historicamente, exercendo influência sobre as condutas de maneira implícita e explícita e os próprios sujeitos, considerando que as regras a modificar estão incorporadas em seus modos de pensar, sustentando hábitos de grande estabilidade no tempo (DAVINI, 2009, p. 51).

Reside aí um dos maiores desafios: oferecer dentro de um serviço de caráter coletivo ações voltadas para sujeitos com especificidades tão próprias quanto os psicóticos e, mais do que isso, buscar aquilo que cada sujeito traz de indicação para direcionar a condução de seu próprio tratamento.

É certo, segundo Guerra (2010), que muitas vezes o sujeito psicótico prescinde de um dispositivo institucional de cuidado ou mesmo de um analista para que desenvolvam diferentes mecanismos para solucionar os seus impasses. Todavia, não é sempre que essas soluções por eles operadas favorecem a possibilidade do vínculo ou a retomada do laço social, como é o caso da passagem ao ato anteriormente citada. Logo, outro desafio que se impõe é justamente o de possibilitar caminhos que oportunizem ao usuário "um funcionamento mais favorável ao seu pertencimento à convivência social (...) com maior autonomia pessoal" (TENÓRIO e ROCHA, 2006, p. 104) e, aliado a isso, intervir "no meio social do paciente, de modo a fazer com que este esteja mais disponível para acolher o sujeito que circula aí de modo um pouco peculiar" (TENÓRIO e ROCHA, 2006, p. 104).

Para essa finalidade, a atenção psicossocial, "diretriz da assistência psiquiátrica pública" (TENÓRIO e ROCHA, 2006, p. 103) se apresenta enquanto substitutiva ao modelo manicomial – que priorizava o isolamento – e é caracterizada "por uma ampliação do escopo das intervenções no sentido de tratar a psicose no próprio meio social e promover as condições para uma existência mais favorável do doente mental grave, inclusive com o objetivo de preservar ou resgatar os laços de pertencimento social do paciente" (TENÓRIO e ROCHA, 2006, p. 103-104). Desse modo, a RAPS, bem como os seus dispositivos, se constituem como estratégia essencial por se sustentarem em um paradigma que aposta na proximidade com a comunidade e no favorecimento da promoção dos laços sociais, visto que "o sentido de cuidar deve ser desenvolvido de tal forma a ampliar os espaços de existir e realizar trocas afetivas" (MOREIRA e ONOCKO, 2017, p. 471).

Para que isso se efetive, contudo, é fundamental alterar o imaginário social em torno da psicose para que esta possa ser compreendida não como um "déficit que tem de ser medido ou corrigido por referência a um funcionamento normal" (TENÓRIO e ROCHA, 2006, p. 103), mas como um modo peculiar de funcionamento do sujeito, o que parece uma proposta mais coesa. Isso significa que é imprescindível pensar em uma dimensão subjetiva, de dinâmicas complexas e multifacetadas, de difícil acesso e modificação. Tratam-se de práticas e pensamentos tão incorporados que há muito se tornaram inquestionáveis, fazendo com que as regras e os modos de ser e agir não mais necessitem de uma representação externa, pois já estão internalizadas em cada sujeito de maneira tão arraigada que sequer são discutidas, mas tomadas como verdades. Isso implica, pois, que as mudanças pressupõem, necessariamente, alteração nos modos de ver, comportar-se e entender a questão da saúde mental, tanto por parte dos serviços, que não podem ser constituídos como lugares diferentes com as mesmas práticas anteriores, quanto por parte de todos os sujeitos implicados, sejam trabalhadores da saúde mental, usuários dos serviços, familiares e/ou comunidade em geral. Em suma, é necessária uma mudança institucional, política, cultural e – por que não? – individual.

No que tange a questão dos serviços, Amarante (2007), em sua obra "Saúde Mental e Atenção Psicossocial", traz que o desafio consiste na superação da visão reducionista. Segundo ele, a proposta deve ir além da mera reestruturação destes serviços ainda que tal reestruturação seja uma condição sine qua non para a mudança, chamada por ele de processo social complexo. Isso significa que "os serviços têm mesmo de ser radicalmente transformados e os manicômios superados, mas isso não deve ser o objetivo em si, mas uma consequência de princípios e estratégias que lhes são anteriores" (AMARANTE, 2007, p. 63). A solução, ainda segundo o mesmo autor, seria pensar o campo da saúde mental e da atenção psicossocial justamente como um processo e não apenas como um modelo. Esse processo teria implicações nas dimensões teórico-conceitual; técnico assistencial; jurídico político e sociocultural, sendo esta última a mais difícil de ser atingida.

A dinâmica social e dos serviços, sejam eles de saúde ou outros de ação social e intersetorial, "tende a mostrar fortes resistências à incorporação das mudanças, criando obstáculos às novas práticas" (DAVINI, 2009, p. 52). Tal fato pode ser explicado historicamente. Menicucci (2007), em sua obra "Público e privado na política de assistência à Saúde no Brasil: atores, processos e trajetória", traz um percurso sócio-histórico e político acerca das políticas de saúde no Brasil. Segundo ela, desde seus primórdios, as decisões tomadas acerca das políticas de assistência à saúde giram sempre em torno do favorecimento e salvaguarda dos interesses das classes dominantes. O formato ambíguo adquirido pelas políticas de saúde, desde sua origem e mantido através de interesses da mesma forma díspares, foi determinante para a consolidação de meios desiguais de oferta e acesso a essas políticas. Tal fato teve como uma de suas principais consequências, no nível psicológico, a introjeção, por parte da grande massa, dessa qualidade heterogênea das relações sociais, presente até hoje e facilmente verificada na carência de uma identidade coletiva na sociedade.

Isso se concretizou, por um lado, pela defesa de uma forma de assistência desigual por parte dos menos interessados na mudança bem-sucedida do modelo de atenção à saúde – pois encontravam na doença um mercado cativo e a garantia de lucro – e, por outro lado, pelo fato de a sociedade, principal representante da força questionadora, ainda manter uma visão individualista resultante de certo nível de assimilação de padrões de comportamentos induzidos. A consequência disso tem sido a conformidade, por parte da grande maioria dos cidadãos, a um tipo de assistência, desde sua gênese, caracterizada principalmente pela segregação que, tendo sido reafirmada em toda a sua trajetória, solidificou valores os quais a Reforma, a despeito da tentativa de ruptura com o protótipo anterior, não foi capaz de desarranjar totalmente. Isso significa dizer que a garantia legal de direitos através da Constituição não foi suficiente para que se configurasse a implantação efetiva dos mesmos, porque não veio acompanhada de uma sociedade capaz, não só de assimilar esses direitos, mas também de legitimá-los.

A exemplo da Reforma Sanitária, apesar de ter sido iniciada com a mobilização e movimentos sociais, a Reforma Psiquiátrica também encontrou obstáculos no tocante à dimensão sociocultural. Esses obstáculos evidenciam a frágil capacidade mobilizadora da sociedade atual, que pode ser atribuída à falta de sentimento genuíno de pertença a uma coletividade, de uma convicção social e de envolvimento com as causas, não só dos mais necessitados, como de todos em sentido geral. Essas características, por sua vez, não são nada além de um reflexo de um modelo segmentado de assistência e da preservação de arranjos previamente estabelecidos que comprometem a implantação dos princípios já garantidos por meios legais. Para que as mudanças se tornem, de fato, efetivas, é imprescindível que a população tome a questão da exclusão e da desigualdade, tão acentuadas pelo costume da diferenciação enraizado na organização cultural da nossa sociedade, como prioridade, o que infelizmente não é o que se tem observado.

Essa mudança, segundo Amarante (2007), deveria atingir primeiramente níveis bem mais profundos e ideológicos, de modo a alterar a função simbólica que pautas como a da saúde mental exercem em uma cultura com pensamentos individualistas tão consolidados como a nossa. Em suma, seria necessário começar a ultrapassar as limitações culturais tomando como ponto de partida justamente a concepção da atenção psicossocial como um movimento, um processo. Isso significa "incluir a sociedade na discussão da Reforma Psiquiátrica com o objetivo de provocar o imaginário social a refletir sobre o tema da loucura, objetivando a inclusão e inserção social dos indivíduos em sofrimento" (AMARANTE, 2007, p. 73). Em outras palavras, o que se deve buscar é um conjunto de inovações e transformações que contribuam para a "construção de um novo imaginário social que não seja o de exclusão, rejeição ou tolerância, mas de reciprocidade e solidariedade" (AMARANTE, 2007, p. 74) ou, mais especificamente, que favoreçam uma maior disponibilidade, por parte do social, para acolher esses sujeitos, oportunizando a estruturação ou a retomada do laço social.

Em vista disso, é possível perceber que a condução da questão da saúde mental no Brasil precisa passar, imprescindível e inevitavelmente, pela mudança não apenas de modelo, mas do imaginário social acerca da mesma. Trata-se, portanto, de operar em dimensões mais subjetivas e morais sem deixar de lado, entretanto, a dimensão prática e concreta. Isso significa dizer que as mudanças no modelo de atenção e, consequentemente, nas formas de lidar e conceber a saúde mental, devem necessariamente se constituir como um processo e ser acompanhadas por um movimento de incessante contestação das práticas institucionais e concepções sociais já instituídas. Tal pretensão se torna, no entanto, obstaculizada frente as recentes mudanças e retrocessos aos quais a Reforma Psiquiátrica Brasileira foi submetida, sobretudo no que se refere à inclusão do hospital psiquiátrico como componente dos pontos de atenção da RAPS pela Portaria 3.588/2017. Na contramão de tudo o que a supracitada Reforma preconiza, "o Ministério da Saúde deixa de considerar os serviços como sendo 'substitutos' de outros, não fomentando mais o fechamento de unidades de qualquer natureza. Assim, não há mais porque se falar em 'rede substitutiva', já que nenhum Serviço substitui outro" (BRASIL, 2017, p. 4). Nesse sentido, o que parece ser apenas uma questão meramente morfológica traz em si uma gama de implicações de ordem semântica, em especial sobre a dimensão social que a Reforma Psiquiátrica precisa alcançar. Ao considerar os serviços extra-hospitalares não mais como substitutivos, a referida Portaria abre os caminhos para o retorno ao modelo asilar com todos os riscos a ele atinentes, principalmente o da cronificadora segregação à qual eram submetidos os pacientes psiquiátricos e de cuja superação tem-se ocupado, durante décadas, todo o movimento antimanicomial brasileiro. Em outras palavras, a aludida inclusão do hospital psiquiátrico na RAPS aliada à concepção reducionista e simplista sob a qual está assentada a lógica hospitalocêntrica, traz a tona os riscos de retrocesso assombrados pelo fantasma da marginalização e impõe, aos militantes da causa antimanicomial, novas estratégias e desdobramentos para que a garantia do cuidado efetivo em dispositivos territoriais e abertos não seja aviltada, comprometendo a reabilitação e ressocialização dos pacientes e mantendo-os cada vez mais estigmatizados e excluídos. Tal proposta aponta para os desafios de um movimento instituinte que, por força da própria expressão, pressupõe mobilidade, cinesia e dinâmica, de modo que, na medida em que se alcança um propósito, outro assume imediatamente sua posição, não permitindo que se chegue a um ponto de estagnação, o que só levaria novamente à continuidade do paradigma de exclusão e da visão social anteriores acerca do sujeito psicótico como aquele que precisa ser asilado e cuja unidade pretendida é a da normalização.

Portanto, é necessário "desconfiar das ilusórias soluções positivistas pela normalização da diversidade" (SARACENO, 2011, p. 98). Trata-se de não negar a diferença, mas de reconhecê-la e, então, lidar com ela, respeitando-lhe as especificidades. É nesse sentido que se dá a aposta na RAPS ao propor uma "rede de serviços de saúde mental integrada, articulada e efetiva nos diferentes pontos de atenção" (BRASIL, 2011) que atenda aos sujeitos que experimentam "formas de relação com o mundo e com o outro que contrastam com os códigos socialmente estabelecidos" (EMERICH et al., 2014), como é o caso dos psicóticos. A orientação é ampliar e diversificar os serviços de modo a "articular sistematicamente as redes de saúde e de economia solidária com os recursos disponíveis no território para garantir a melhoria das condições concretas de vida, ampliação da autonomia, contratualidade e inclusão social de usuários da rede e seus familiares" (BRASIL, 2011), o que implica a "construção de espaços coletivos plurais, heterogêneos e múltiplos" (BRASIL, 2011) que favoreçam a criação de vínculos e laços, valendo-se para tanto da capacidade de organização das instituições e dos recursos existentes na comunidade. Segundo Saraceno,

consideramos recurso apenas aquilo que nos é dado. Todavia, recurso é também aquilo que existe, mas que não sabemos ver. A comunidade é, em si, um recurso, os organismos públicos (os outros serviços sanitários, as escolas, as entidades assistenciais) e aqueles privados (as paróquias, os partidos políticos, os sindicatos, as associações esportivas etc.) são todos recursos (SARACENO, 2011, p. 100).

Portanto, a RAPS, em decorrência de sua capilaridade e extensão, aparece como recurso privilegiado para, no próprio fazer, contribuir para uma transformação dos serviços que não seja reduzida unicamente à mudança do modelo de atenção, mas que sirva como preparo prévio do terreno que, posteriormente, se transforme em um campo demasiadamente fértil para a disseminação de um novo imaginário social capaz de aprimorar o suporte ao diferente e de sustentar de maneira satisfatória as demandas relacionadas aos sujeitos psicóticos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações até aqui postas em evidência problematizam a questão da psicose no campo da saúde pública e trazem à tona a RAPS enquanto dispositivo estratégico de mediação entre a sociedade e o sujeito psicótico. É fundamental compreender que a psicose não é uma deficiência, mas de um modo peculiar de ser dos sujeitos e de se posicionarem frente aos impasses a eles impostos. Muitas vezes, a posição tomada por esses sujeitos é de tal ordem que afeta e obstaculiza a sua possibilidade de laço social. Quando isso acontece, o resultado é nada mais do que a sua exclusão. Frente a isso, torna-se necessária a busca por uma alternativa que preconize não a tentativa de normalização do sujeito, mas a capacidade da sociedade de estar preparada para lidar com ele por outras vias que não a da segregação. Para que isso seja possível, é preciso desmistificar a noção de loucura com sinônimo de periculosidade e retomar a questão do psicótico como sujeito de direitos. No entanto, isso só é exequível a partir do momento em que se convoca o social a refletir sobre o tema da loucura, favorecendo um maior acolhimento desses sujeitos e, consequentemente, a retomada do laço social. É justamente nesse ponto onde a RAPS se apresenta como dispositivo privilegiado, pois está estrategicamente circunscrita à comunidade na qual se pretende inserir o sujeito psicótico. Além disso, apesar dos recentes retrocessos na política de saúde mental, a mudança de paradigma que fundamentou a Reforma Psiquiátrica e cuja base tem servido para a efetivação dos dispositivos e estratégias adotados pela própria RAPS, é de fundamental relevância para favorecer a tão necessária mudança no imaginário social acerca da psicose. Muitos passos já foram dados em direção aos avanços nas estratégias de saúde mental. Contudo, é imprescindível que essa luta seja permanente, de modo a vencer um dos maiores desafios que se impõe que é o de impedir o retorno ao modelo hospitalocêntrico ou que as práticas anteriores sejam retomadas nos modelos atuais, ainda que em distintos locais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS

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1. Termo criado por Jacques Lacan em 1953 e conceituado em 1956, para designar o significante da função paterna (...) segundo essa perspectiva, o pai exerce uma função essencialmente simbólica: ele nomeia, dá seu nome e, através desse ato, encarna a lei" (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 542).

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