ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

A prática dos psicólogos e psicólogas nos centros de atenção psicossocial

The practice of psychologists in brazilian psychosocial care centers

La práctica de los psicólogos y psicólogas en los centros de atención psicosocial (Brasil)

Camila Cristina de Oliveira Rodrigues1; Maria Pilar Albertín Carbò2; Silvio Yasui3

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v15n28.0007

1. Docente da Faculdade São Leopoldo Mandic, Araras - SP. Endereço eletrônico: camila.rodrigues@slmandicararas.edu.br
2. Docente da Universitat de Girona (Espanha)
3. Docente da UNESP - Campus de Assis

Resumo

Este artigo busca discutir a prática desenvolvida nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a atuação dos psicólogos e psicólogas nessa instituição. Buscou-se refletir sobre este trabalho, enfatizando algumas estratégias clínicas e institucionais. A experiência vivida como psicóloga foi utilizada como referência para elaborar as bases teóricas que fundamentam o modelo de cuidado preconizado pela atenção psicossocial. Com relação aos resultados, foi possível identificar que o trabalho desenvolvido nos CAPS pode ser organizado em categorias como a prática a dois e a prática institucional. Além disso, apontaram-se algumas dificuldades da prática concernentes ao processo de implantação desses equipamentos. Concluiu-se que o CAPS é um serviço de saúde mental potente e capaz de se ajustar às especificidades e necessidades das pessoas usuárias e que os psicólogos e psicólogas têm tido um papel relevante na construção e desenvolvimento do campo da atenção psicossocial.

Palavras-chave: Saúde Mental. Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Psicologia. Cuidado.


Abstract

This article seeks to discuss the practice developed in the Brazilian Psychosocial Care Centers (CAPS) and the role of a psychologist at this institution. We sought to reflect on this work, emphasizing some clinical and institutional strategies. The experience lived as a psychologist in CAPS services was used as a reference to substantiate and elaborate the theoretical bases that underlie the care model recommended by psychosocial care. Regarding the results, it was possible to identify that the work developed in the CAPS can be organized into categories such as practice for two and institutional practice. In addition, some difficulties were pointed out concerning the process of implementing this type of care. It was concluded that the CAPS is a powerful device capable of adjusting to the specificities and needs of people users and that psychologists have played a relevant and contributory role in the development of the field of psychosocial care.

Keywords: Mental Health. Brazilian Psychosocial Care Center (CAPS). Psychology. Care.


Resumen

Este artículo busca discutir la práctica desarrollada en los Centros de Atención Psicosocial (CAPS – Brasil) y el papel del psicólogo en esta institución. Buscamos reflexionar sobre este trabajo, enfatizando algunas estrategias clínicas e institucionales. Se tomó como referente la experiencia vivida como psicóloga para fundamentar y elaborar las bases teóricas que sustentan el modelo preconizado por la atención psicosocial. En cuanto a los resultados, fue posible identificar que el trabajo desarrollado en el CAPS se puede organizar en categorías como práctica para dos y práctica institucional. Además, se señalaron algunas dificultades en relación con el proceso de implementación de este tipo de atención. Se concluyó que el CAPS es un dispositivo poderoso capaz de ajustarse a las especificidades y necesidades de las personas usuarias y que los psicólogos han jugado un papel relevante en el desarrollo del campo de la atención psicosocial.

Palabras clave: Salud Mental. Centro de Atención Psicosocial (CAPS – Brasil). Psicología. Cuidado.

 

INTRODUÇÃO

O ser do homem não pode ser compreendido sem sua loucura, assim como o ser do homem não seria compreendido se ele não carregasse a loucura dentro de si como o limite de sua liberdade. (Jacques Lacan)

Diante das incessantes transformações da sociedade e da fragilidade com que se estabelecem os laços sociais na modernidade, entre outros desdobramentos subjetivos decorrentes do avanço da globalização, a Psicologia, como ciência viva, vem se transformando e questionando seu papel e posicionamento ético diante dessas mudanças.

Se, antes, os psicólogos e psicólogas eram estimulados a ocupar um cargo de especialistas que atuavam, principalmente, na esfera privada e individual do cuidado em Saúde Mental, hoje se considera que seu papel histórico vai além. Atualmente, esses profissionais têm atuado nos mais diversos espaços assistenciais, construindo, com diferentes grupos e instituições, atividades e tarefas comunitárias e coletivas, além do trabalho de apoio na construção de políticas públicas e sociais específicas.

Tais ações buscam produzir um campo de possibilidades para que as singularidades apresentadas pelos diferentes sujeitos sejam ouvidas e consideradas na produção do seu cuidado, desconstruindo padrões e concepções sociais e institucionais preestabelecidas historicamente.

É importante enfatizar que, com isso, os psicólogos e psicólogas vêm rompendo uma posição de imparcialidade muito incentivada no princípio da institucionalização da profissão por meio do discurso da neutralidade. Ao se colocar mais ativamente no campo social, esses profissionais vêm se envolvendo e se comprometendo, não só como profissionais da clínica, mas como atores políticos implicados com a realidade das pessoas e instituições, dispondo-se a colaborar com os processos de intervenção e transformação social.

Segundo Íñiguez-Rueda (2003), cada interação, por menor que seja, contribui para a estruturação do social em uma medida talvez incomensurável, pequena, mas essencial. Assim, como membros integrantes da sociedade, os psicólogos e psicólogas podem ser agentes importantes de transformação.

Cabe ressaltar que este debate em torno da transformação dos modos de cuidado e do papel dos profissionais de Saúde Mental tem incentivado também uma participação maior e mais ativa das pessoas usuárias nos processos de produção de cuidado (Moreira e Onocko-Campos, 2017; Oliveira, Andrade e Goya, 2012). De acordo com Campos (2000), tais considerações colaboram com a produção de uma prática mais ampliada e democrática.

Do ponto de vista da psicanálise, este posicionamento remete à proposta de fomentar o que ficou conhecido como analista cidadão. Analista cidadão é o (a) analista orientado (a) a atuar a partir de um compromisso ético e político com as lutas pelos direitos humanos e a emancipação dos sujeitos, intervindo a partir da ressignificação dos discursos e dos processos de transformação no campo do inconsciente (Laurent, 1999).

Conforme destacou Laurent (1999), os (as) analistas ocupam um lugar de não-saber perante o saber da pessoa usuária sobre si mesma. Trata-se de uma posição de quem está ao lado das pessoas para produzir em conjunto o cuidado, reconhecendo os seus movimentos de subjetivação e des-subjetivação e seus processos de singularização.

Considerando essa proposição, recomenda-se que os psicólogos e psicólogas desenvolvam uma escuta sensível sobre os discursos apresentados pelos sujeitos e uma leitura crítica dos processos de universalização, homogeneização e naturalização presentes na dinâmica das instituições.

Ao entender, de forma crítica, que as crenças sociais são construções que precisam ser escutadas e democraticamente consideradas, também devem ser passíveis de se submeterem a questionamentos e ressignificações. Esses profissionais podem somar sua voz aos demais discursos produzidos no campo do cuidado compondo um trabalho coletivo em Saúde Mental (Lane e Sawaia, 1988).

Por sua vez, desde o campo da Saúde Coletiva, Franco e Merhy (2013) abordam o tema da implicação do profissional de saúde pública propondo que estes (as) tomem as pessoas usuárias como guias para alcançar uma maior compreensão sobre as suas reais necessidades.

Assim, a partir das trajetórias de vida apresentadas pelos usuários e usuárias, esses autores recomendam que se acompanhe e participe dos acontecimentos vivenciados pelos sujeitos, buscando compreendê-los e apoiá-los em seus movimentos de composição e decomposição subjetiva e suas conexões e desconexões com os espaços institucionais em que circulam (Merhy et al., 2014).

Costa Rosa (2013), por sua vez, propõe, a partir do campo de saber da Psicologia, que o papel dos (as) profissionais dos serviços de Saúde Mental seja o de um agente intercessor. Segundo o autor, o intercessor não tem a tarefa de um interventor ou de cuidador; diferente disso, o intercessor atua subvertendo o paradigma e desconstruindo o referencial de que as respostas ao sofrimento psíquico dos usuários e usuárias devem ser encontradas nos profissionais.

Com bases nos referenciais citados acredita-se que a principal tarefa dos psicólogos e psicólogas no campo da Saúde Mental é apoiar os sujeitos na construção de suas próprias respostas, mostrando-lhes campos de possibilidades e de escolhas para que possam produzir novos sentidos existenciais.

Assim, a experiência da Saúde Mental demonstra um exemplo possível de conexão entre prática clínica e o processo de transformação social no campo da Psicologia, reforçando o contexto de mudança de paradigmas e os questionamentos sobre o modelo científico pautado na racionalidade que concebia Psicologia como ciência até então.

 

1 AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

No Brasil, o movimento de mudanças nos paradigmas de cuidado está relacionado ao processo de democratização que se fortaleceu no final da década de 1980 e marcou o enfraquecimento da ditadura militar como o modo de governar a população.

Do ponto de vista da dimensão da subjetividade, um dos principais contextos onde estas mudanças se agenciaram foi no campo da Saúde Mental (Amarante, 2013). O cenário democrático potencializou o agenciamento de um processo de reflexão crítica que deu voz à problematização dos processos de estigmatização e violação de direitos sofridos pelas pessoas consideradas portadoras de intenso sofrimento mental.

Cabe lembrar que até aquele momento, a forma de cuidar era realizada em espaços hospitalares distantes da comunidade e dirigidos pelas premissas da ciência médica e do poder psiquiátrico a partir de técnicas de medicalização e disciplinarização dos corpos (Foucault, 1997).

Naquele contexto, foi destacado o papel de diferentes organizações sociais de militância que constituíram o Movimento da Reforma Psiquiátrica em todo o país. Este movimento teve um papel relevante tanto na produção de uma crítica ao modelo instituído quanto na contribuição para a construção de uma nova política pública nacional de saúde mental. Essa política se pautou no processo de construção de outro modelo de cuidado, substitutivo ao modelo psiquiátrico, que ficou conhecido como Atenção Psicossocial (Yasui, Luzio e Amarante, 2018).

Com relação a construção do modelo de Atenção Psicossocial, segundo Amarante (2003), esta inclui pelo menos quatro dimensões. A primeira diz respeito ao campo epistemológico ou teórico-conceitual, por meio do questionamento de saberes e conceitos da psiquiatria como isolamento, neutralidade, tratamento moral, anormalidade e doença e cura; a segunda dimensão está relacionada às mudanças técnico-assistenciais que buscam construir novos espaços de sociabilidade, trocas e produção de subjetividades; já a terceira, aborda questões jurídico-políticas, voltadas para a luta por considerar as pessoas usuárias como cidadãs com direitos específicos e a quarta foi denominada dimensão sociocultural e engloba um conjunto de ações e práticas que visam transformar a relação que a sociedade mantém com a loucura e seu discurso.

Um dos frutos deste movimento foi a lei que ficou conhecida como Lei Paulo Delgado, que propôs o fortalecimento de ações baseadas nos direitos das pessoas portadoras de sofrimento mental e o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos do país (Brasil, 2001). A lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, também chamada de Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, abrindo campo para a produção de uma série de políticas específicas e portarias que atualmente embasam a produção da Rede de Atenção Psicossocial em todo país (Brasil, 2004).

Este artigo se propõe a discutir um dos principais pontos de atenção da Rede de Saúde Mental Brasileira, a saber: o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

 

2 O NASCIMENTO DOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAIS (CAPS)

A formação dos primeiros serviços comunitários brasileiros que passaram a desenvolver práticas de Saúde Mental, pautadas na liberdade e no respeito aos direitos dos portadores de algum tipo de sofrimento psíquico, data do final da década de 1980. Neste processo se deu a criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que se destacaram como dispositivos potencialmente capazes de contribuir com a operacionalização desse processo de redirecionamento do modelo de cuidado.

Do ponto de vista do cuidado, pode-se dizer que os NAPS e os CAPS foram inventados objetivando a produção de outra resposta social aos fenômenos relacionados à loucura. Resposta diferente da até então instituída pelo modelo psiquiátrico marcado por um forte processo de des-subjetivação das pessoas portadoras de algum tipo de sofrimento psíquico.

Esses dispositivos serviram de base e inspiração para a construção de um novo equipamento psicossocial que foi denominado de CAPS. Os CAPS se constituíram enquanto uma política pública orientada pela produção de serviços substitutivos ao modelo manicomial, organizados em espaços abertos e comunitários, compostos por uma equipe multiprofissional que atua desde uma perspectiva interdisciplinar e atende em âmbito territorial e comunitário, pessoas portadoras de transtornos mentais graves e persistentes, inclusive aqueles associados ao consumo de álcool e outras drogas (Brasil, 2002; Lima e Guimarães, 2019).

A partir deste modelo, as pessoas passam a poder escolher produzir seu cuidado a partir de outra modalidade de atenção. Diferente do modelo ambulatorial e hospitalar oferecidos até então, as pessoas que buscam os CAPS passam a ser cuidadas em espaços mais próximos à sua moradia, quer em situações de crise, quer em contextos de acompanhamento contínuo de suas questões subjetivas e sofrimentos, além do seguimento de seus processos de reabilitação psicossocial.

Nos CAPS, os profissionais se deparam com fenômenos clínicos associados a diferentes estados de sofrimento mental, tais como: quadros psicóticos, agitações psicomotoras, passagens ao ato, delírios, alucinações, assim como estados físicos e psíquicos ansiosos e depressivos que podem levar o sujeito a contextos de embotamento, esgotamento, ideação suicida, exclusão e marginalização intensas (Zenoni, 2000).

Para atender a variabilidade desses fenômenos, os CAPS foram organizados em diferentes modalidades, que podem funcionar apenas durante o dia e também no período noturno. Além disso, existem serviços específicos para o atendimento de crianças e adolescentes e para pessoas que fazem uso problemático ou nocivo de álcool e outras drogas (Brasil, 2002).

 

3 OBJETIVOS

O objetivo deste artigo é discutir as experiências clínicas e institucionais desenvolvidas nos serviços CAPS por psicólogos e psicólogas a partir da experiência pessoal como trabalhadora deste serviço.

De maneira mais específica, este trabalho visa a favorecer a reflexão sobre a produção de ferramentas clínicas e institucionais de atuação do psicólogo e psicóloga, visando a colaborar com a construção de manejos voltados ao favorecimento dos processos de singularização do cuidado.

 

4 A PRODUÇÃO DO PENSAMENTO CLÍNICO COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

Este artigo é baseado na experiência de uma psicóloga que atuou em diferentes Centros de Atenção Psicossocial. No decorrer de sua atuação profissional, atendeu usuários e usuárias com intenso sofrimento psíquico e trabalhou com diferentes profissionais e equipes.

A maioria das pessoas usuárias atendidas tinham diagnósticos de psicose e as diferentes referências clínicas foram construídas por meio de cursos, análise pessoal e supervisões realizadas em reuniões de equipe com apoio do olhar de outros profissionais que, em sua maioria, tinham formação em psicanálise.

Durante esse trabalho clínico e institucional, a psicóloga elaborou um diário de campo, no qual relatou suas reflexões e vivências em relação aos atendimentos realizados individualmente e em grupo, além do trabalho em equipe que ofereceram suporte à produção de um pensamento clínico capaz de subsidiar a prática desenvolvida no CAPS.

Como se sabe, a pesquisa baseada na psicanálise está mais ligada a um certo tipo de racionalidade que advém de experiências práticas que visam não apenas a atingir determinados fenômenos ou dinâmicas do psiquismo, mas também produzir uma forma específica de análise que pode ser chamada de pensamento clínico.

Para Green (2018), o pensamento clínico está vinculado ao exercício de produzir conceitos que revelam as respostas do inconsciente e seus avanços, tais como: alucinações, delírios, somatizações, racionalizações, entre outras estratégias. Segundo Mezan (2006), o território da pesquisa em psicanálise é bastante heterogêneo, porém, o método psicanalítico tem sido privilegiado nas pesquisas cujo objeto inclui recortes que dizem respeito ao campo da clínica.

O método clínico, portanto, centra-se no estudo de casos singulares, que podem ser entendidos aqui como uma pessoa, uma profissional, um grupo, uma família ou uma instituição (Aguiar, 2006). Entende-se, com isso, que a pesquisa diz respeito a um método complexo que requer um trabalho ético, atencioso e meticuloso por parte do pesquisador, onde mais importante do que o conhecimento, é o caminho para alcançá-lo.

 

5 DESENVOLVIMENTO

5.1 O trabalho no CAPS: a composição de distintas práticas

Segundo Zenoni (2000), em uma instituição como o CAPS, deve-se considerar que existem duas práticas distintas: "a prática (...) de tratar a dois e a prática institucional que é necessariamente coletiva" (Zenoni, 2000, p.15).

Para o autor, essas duas práticas são fundamentais para a composição do projeto terapêutico singular, pois sem o limite de sua função social, a instituição corre o risco de se tornar um lugar de alienação e, sem o limite de sua função terapêutica, a função social corre o risco de ser suprimida (Zenoni, 2000). Assim, acredita-se que o modelo de cuidado pautado na Atenção Psicossocial é composto por práticas heterogêneas que precisam ser aprofundadas em seus diferentes aspectos, bem como exploradas de forma crítica, apontando suas possíveis tensões e contradições.

A seguir, se discute o Centro de Atenção Psicossocial desde a prática institucional e, posteriormente, com base na prática clínica, aqui denominada de prática a dois.

5.2 A prática institucional nos Centro de Atenção Psicossocial

De acordo com modelo de Atenção Psicossocial, a prática institucional é composta por diferentes estratégias, entre as quais destacam-se o acolhimento e ambiência. A produção de um ambiente flexível e acolhedor é uma das principais estratégias institucionais do CAPS e o maior objetivo dessas estratégias é possibilitar que o serviço atenda as mais variadas manifestações do sofrimento subjetivo.

O acolhimento se preocupa com a maneira como a pessoa usuária é recebida na instituição, a sua recepção inicial e a atenção cotidiana que são oferecidas desde a chegada, durante todo o tratamento até o encaminhamento do usuário para continuidade do cuidado em outro serviço de saúde ou intersetorial. Já a ambiência compreende a estratégia que se ocupa da produção de um espaço agradável e aconchegante para a pessoa usuária estar e permanecer em diferentes momentos do seu tratamento, seja nos processos de crise ou de reabilitação.

Contudo, é preciso compreender que, embora haja toda esta preocupação com as pessoas usuárias, muitas vezes elas não conseguirão se vincular imediatamente nem ao espaço do CAPS, nem com o cuidado proposto. Nestes casos, o serviço deve oferecer um acolhimento ainda mais sensível e compreensivo, voltado ao atendimento das especificidades e dos tempos subjetivos dessas pessoas.

Nesses casos específicos é importante lembrar que tal reação não é um ataque à instituição ou a um profissional de saúde e sim um efeito dos processos de sofrimento vividos em outras relações sociais. Assim, a chegada ao CAPS sempre deve ser compreendida como uma nova oportunidade, uma outra possibilidade dessas pessoas tentarem, aos poucos, experimentar e construir outro tipo de encontro terapêutico, que deve ser pautado, acima de tudo, no respeito e na inclusão da diferença.

Além do acolhimento e da ambiência, deve-se destacar no trabalho institucional a prática realizada por meio das oficinas, rodas, assembleias e grupos terapêuticos. Por meio destas estratégias institucionais é possível que muitas pessoas usuárias consigam se vincular ao serviço e ao tratamento de maneira mais aberta e fluída, sem necessariamente estabelecer um vínculo direto e profundo com algum profissional específico. Esta prática é altamente recomendada para contextos de resistência relacionados a comportamentos persecutórios ou paranoides.

Nas oficinas terapêuticas, conta-se ainda com os recursos artísticos, culturais, pedagógicos que funcionam como tecnologias institucionais que oferecem suporte à construção de uma vinculação do usuário com o coletivo de profissionais. Os diferentes recursos utilizados nas oficinas funcionam como instrumentos de mediação na construção de vínculos das pessoas usuárias com os profissionais e também com outros usuários e usuárias do serviço.

Além disso, vale reforçar que a prática institucional tecida pelo CAPS não se restringe ao seu espaço físico e profissionais. O CAPS também deve ser comprometido com a articulação com o fora, buscando fortalecer os laços sociais e construir uma rede de apoio e suporte social para os usuários e usuárias para além dos muros da instituição.

Neste sentido, o desenvolvimento de práticas comunitárias e de convivência, visando o apoio e orientação familiar e a construção de um cuidado compartilhado com outros serviços e instituições são estratégias institucionais fundamentais.

É importante ressaltar ainda que as práticas institucionais não garantem por si só a produção do cuidado para o sujeito em sofrimento. A prática institucional é uma estratégia psicossocial fundamental para a produção de um lugar social para os sujeitos, ela é um ponto essencial para que o processo de subjetivação emerja, mas certamente não possibilita sozinha que este processo chegue a alcançar a dimensão da singularidade. A este respeito, se destaca o papel do trabalho da prática a dois que será abordada a seguir.

5.3 A prática a dois

O trabalho a dois se incorpora ao trabalho do CAPS e investe o profissional de saúde mental na construção do cuidado baseado na produção de vínculo mais profundo com as pessoas usuárias e no oferecimento de apoio e suporte ao seu movimento de autoconstrução.

A prática a dois se refere ao trabalho clínico e ético pautado em um trabalho delicado e minucioso composto tanto pela oferta de suporte, apoio e acolhimento, como pela produção de pertencimento, incluindo aqui a apropriação do exercício civil de cidadão de direitos e deveres.

Miller (1996) acredita que a psicose nos remete aos confins de sua produção. Portanto, sabe-se que o trabalho de incluir as pessoas que apresentam intenso sofrimento mental nos mais variados contextos sociais atuais é um grande desafio.

A partir disso, entende-se que

o que pode substituir um manicômio não são estruturas puramente externas, tem que ser um discurso. Tem que ser uma estrutura simbólica que dá lugar ao psicótico e este é um dever (...) de todas as pessoas que entram na relação com os psicóticos (Viganó, 2007. p. 8).

Com isso, sabe-se que a produção de um lugar simbólico para as pessoas em sofrimento faz parte da prática clínica que deve ser privilegiada no trabalho a dois e esta produção está relacionada com a possibilidade de um processo de singularização emergir.

O trabalho a dois é um tipo de prática que pode apoiar a construção dos sujeitos singulares e participar da produção de uma relação diferenciada, mais saudável, entre eles, as outras pessoas e o mundo.

Trata-se de uma relação diferente no sentido de preencher lacunas subjetivas, romper com a solidez do isolamento e o congelamento que as pessoas em intenso sofrimento costumam produzir para se defenderem e se protegerem das marcas do Outro, que são experimentadas muitas vezes de maneiras ameaçadoras, como verdadeiras possibilidades de destruição da própria existência.

Este movimento é conhecido como movimento de autoproteção. Trata-se de manifestações psíquicas e comportamentais também chamadas de crises subjetivas. As crises em geral são expressas por meio de passagens ao ato, comportamentos repetitivos, isolamento ou silenciamento, acumulação de objetos, atitudes queixosas e demandantes, entre outros.

Durante a prática a dois é recomendado partir de uma abordagem respeitosa a resposta construída pelas pessoas usuárias, mesmo que ela esteja hostil e agressiva, visto que tais atitudes e comportamentos consistem em tentativas reais do sujeito de investir na busca por algo fora do seu próprio corpo que sirva de ferramenta para apoiá-lo em sua tentativa de reorganização subjetiva.

Como explica Viganó:

Por isso, até o fim, esses gestos não são feitos, eles não viram uma palavra. E como não terminam, damos remédio e bloqueamos seus músculos para parar esse ritual estranho, que deixa de fazer essas coisas. Por isso, paradoxalmente, muitas intervenções que fazemos no tratamento dos psicóticos vão de encontro a seus dois movimentos, suas duas tentativas, a de autodefesa e a de autoconstrução (2007, p.6).

Vale lembrar que este movimento, embora denominado de trabalho a dois, é coletivo, pois ultrapassa a relação que os membros da equipe estabelecem com o sujeito, atingindo outras esferas do campo social, tais como o contexto institucional, profissional e familiar.

Neste sentido, é necessário possibilitar que a construção de vínculo e a transferência não se restrinja apenas a um ou outro profissional, mas possa se espalhar na instituição, uma vez que a intensidade da produção do sujeito tende a se expressar sob fluxos variáveis que podem extravasar os espaços terapêuticos tradicionais e se disseminar por toda equipe e instituição nas múltiplas possibilidades de agência que o sujeito encontra e cria.

Por isso, é altamente recomendado que os profissionais compartilhem entre si os produtos destes vínculos em espaços como reuniões e outros grupos de discussão de casos, como as equipes de referência. Essas trocas juntamente a construção dos projetos terapêuticos singulares auxiliam a equipe a conhecer melhor as pessoas usuárias, entender seus movimentos na instituição e construir ações de cuidado pertinentes.

Outra abertura que a prática a dois implica diz respeito a capacidade dos próprios membros da equipe oferecer suporte para as construções subjetivas dos usuários e usuárias do CAPS. Ao acompanhar o movimento singular de cada sujeito, o profissional oferece-se como testemunha da existência do sujeito e do Outro, confortando, apoiando e orientando-o quando possível e necessário.

Assim, ao demonstrar interesse pelas respostas produzidas pelos usuários e usuárias, os psicólogos e psicólogas podem colaborar para que as pessoas usuárias ocupem uma posição de sujeito nas relações com os profissionais e o serviço, o que lhes permite construir algum tipo de laço social a partir de sua vivência do cotidiano, mesmo que não se expresse na forma de um diálogo ou ação clara e estruturada.

Além disso, ressalta-se que a maioria dos manejos com pessoas em sofrimento psíquico intenso requer do profissional uma postura de "não-saber", trata-se de um tipo de abordagem que considera que o sujeito é quem sabe sobre o que acontece com ele próprio e não o profissional.

A este respeito, Miller explica

Temos uma experiência histórica, desde o tempo da clínica, que nos permite responder, com certeza, que esse discurso tropeça - tropeça ao produzir um tema. (...) O silêncio do saber, para o qual tende o caminho de Freud, resultou em uma eficácia muito diferente. Mas isso implica que um tópico já está em questão e que foi colocado para trabalhar. Já a clínica da psicose nos leva aos extremos desse discurso (...) onde se coloca a questão da produção do sujeito (...), sua produção como sujeito proibido (1996, p.156).

Para Zenoni (2000), o manejo do psicótico deve partir de abordagens e intervenções clínicas que produzem uma espécie de esvaziamento do saber, da vontade e do poder dos profissionais sobre esses sujeitos. E isso também está relacionado ao trabalho a dois e com a necessidade de estabelecer um certo reordenamento no funcionamento dos serviços de saúde mental.

No caso específico das psicoses, o sentido do conhecimento está ligado à própria existência do sujeito, ele é a própria referência do saber, o gozo desse saber e é justamente por isso que quando alguém se relaciona com ele na posição de saber, agindo como um mestre, o psicótico costuma reagir com passagens ao ato, perseguição ou mania.

Assim, é necessário construir estratégias clínicas para amenizar as defesas psíquicas persecutórias, de modo que o profissional consiga se aproximar e acessar @ usuári@ de forma mais direta e profunda.

Segundo Costa Rosa (2013),

para que o sujeito possa se envolver na produção da subjetividade da saúde, considerada em sentido amplo, é necessário que o terapeuta-intercessor possa passar da posição de suposto professor provedor para o de suporte promotor e facilitador do processo de produção, no qual apenas o sujeito do sofrimento pode ser estruturalmente o protagonista (p. 304).

Neste sentido, o profissional deve agir como um parceiro do usuário e usuária. O terapeuta-intercessor é aquele que pode "assegurar ao sujeito, com uma presença regular, atenta ao mínimo detalhe e, sobretudo, doce, sensível ao que diz respeito à sua invenção" (Viganó, 2007, p.11).

Desse modo, é o Outro quem deve se regular, se limitar e não o psicótico, é isso que coloca o terapeuta na posição de intercessor e de parceria. É preciso, portanto, dar ao sujeito o lugar do conhecimento, este é o tipo de manejo desenvolvido mediante o trabalho a dois.

A manobra consiste não em tornar presente a vontade do Outro (que quer), mas em tornar presente o Outro sujeito, ou seja, a lei, mostrando que todos estão submetidos a ela, inclusive o próprio terapeuta (Zenoni, 2000).

A partir disso, acredita-se que os psicólogos e psicólogas podem legitimar o conhecimento que o sujeito tem de si mesmo, colocando-se na posição de aprendiz de feiticeiro diante do saber fazer dos usuários e usuárias.

Como se pode notar, a prática a dois, realizada nos CAPS, é um trabalho desafiador e desestabilizador, pois para estar ao lado dos usuários e usuárias, os profissionais e a instituição devem se relacionar com o saber-poder de forma bem diferente do que a maioria das formações universitárias e as regras institucionais recomendam.

Assim, cabe aos profissionais da Psicologia desenvolver habilidades para apoiar as pessoas usuárias em seu desejo e movimento de autoconstrução. Considerar em cada intervenção esta dimensão única de cada ser humano, ter gosto pela criatividade e por aprender coisas novas, estas são algumas competências importantes a serem desenvolvidas pelos terapeutas.

 

6 DISCUSSÃO

6.1 Algumas dificuldades concernentes ao atual trabalho desenvolvido nos CAPS

Em relação aos CAPS, vale ainda destacar que os recursos materiais e humanos disponibilizados para a produção destes serviços, muitas vezes, não condizem total ou parcialmente com as demandas e necessidades dos usuários e usuárias, dificultando a produção de uma prática institucional e clínica que favoreça a construção e o acolhimento singular das pessoas usuárias (Amaral et al., 2018).

Muitas vezes essas dificuldades colocam as equipes e instituições em impasses, como, por exemplo, quando a Rede de Saúde existente não conta com outras equipes e serviços para apoiar o trabalho psicossocial, bloqueando os processos de construção de cuidados e a oferta de uma atenção integral seja do ponto de vista clínico ou da reabilitação (Almeida, 2019).

Nas discussões realizadas pelas equipes, não é incomum encontrar realidades como essas, em que os usuários e usuárias se encontram em estados de desamparo emocional, físico e social e sem nenhuma rede de apoio externa, além do CAPS que os atendem (Onocko-Campos, 2019).

Uma usuária que mora com a família, mas que está construindo um projeto para morar em um espaço alternativo ao ambiente familiar ou um usuário que apresenta graves dificuldades psicológicas e físicas e não consegue se apresentar para uma vaga de emprego. Um usuário que sai de hospital psiquiátrico mais estabilizado e expressa o desejo de não voltar para a rua, mas não tem para onde ir, são algumas das inúmeras situações de tensão que as equipes dos CAPS experimentam no seu cotidiano.

A ausência de outros dispositivos sociais que apoiem o trabalho já realizado com estes casos se impõe como uma barreira altamente frustrante para os profissionais e serviços, impedindo o avanço do cuidado, bloqueando os processos de reabilitação, complicando e aprofundando ainda mais o sofrimento e a violação de direitos entre esses sujeitos (Pandé e Amarante, 2018).

Neste sentido, é necessário reforçar a importância da expansão e crescimento da rede de atenção psicossocial e do avanço da construção da política de atenção psicossocial no país, pois é preciso continuar problematizando discursos que insistem em oferecer respostas manicomiais para casos em que, na verdade, o que falta é a construção de mais e diferentes serviços socioassistenciais.

6.2 A atuação dos psicólogos e psicólogas diante das mudanças de paradigma na Saúde Mental

Uma das ações mais importantes com as quais a Psicologia tem contribuído neste campo é a construção de uma prática clínica e institucional crítica compartilhada com trabalhadores e trabalhadoras de outras categorias profissionais, bem como com os usuários e usuárias (Lima, 2018).

No trabalho desenvolvido no CAPS, os psicólogos e psicólogas têm procurado atuar em sintonia com o trabalho coletivo e buscam contribuir para a construção do cuidado agregando a dimensão subjetiva e as relações de saber e poder na condução dos casos (Laurent, 1999).

Além disso, colaboram com a prática social que estimula a participação das pessoas usuárias nos processos de gestão do serviço, estimulando o envolvimento e a cooperação dos usuários e usuárias nos processos de produção do CAPS e do seu próprio tratamento.

Considerando o paradigma da Atenção Psicossocial, o usuário e usuária é compreendido como uma pessoa potencialmente capaz de produzir novos significados para as questões sociais, políticas, estéticas, éticas e subjetivas que emergem de seu cotidiano. Essa compreensão do sujeito vai ao encontro de uma importante noção freudiana sobre o sofrimento psíquico que defende que "há um saber inconsciente em cada ação que se manifesta no desconhecido sintomático, do qual só o indivíduo que sofre tem a chave" (Costa Rosa, 2013, p. 301).

Segundo Seidinger (2004), na clínica da Atenção Psicossocial deve-se desenvolver habilidade para manejar as conexões entre o discurso político e o clínico de forma a não permitir que um supere o outro e impeça a oferta e a construção de um tratamento singular do sujeito que privilegie o respeito a seu estilo e seus sintomas.

Portanto, cabe aos psicólogos e psicólogas, como membros integrantes desse trabalho, participar do movimento crítico em relação aos ideais sociais e aos processos de universalização que buscam padronizar e normalizar a vida social, abrindo espaço para que a singularidade e a subjetividade de cada pessoa sejam consideradas como fator relevante na produção das estratégias de cuidado.

Uma afirmação frequentemente encontrada no discurso das equipes dos CAPS diz respeito à impressão de que atualmente parece que só esses serviços têm responsabilidade de atender a todas as demandas trazidas pelas pessoas usuárias. Contudo, este é um discurso que tende a confundir os profissionais quanto ao principal objetivo do CAPS que é justamente ampliar as redes de conexão do sujeito com sua comunidade.

Nestas situações, é preciso compreender que quanto mais necessidade um sujeito apresentar, mais o CAPS será insuficiente para ele e a equipe terá como tarefa buscar alternativas para além dos seus muros para agenciar as necessidades trazidas pelas pessoas usuárias.

É imprescindível reconhecer que, diferente da lógica manicomial, nenhuma prática psicossocial pode dar conta sozinha da produção de novos processos de subjetivação. Se o CAPS funcionar como um serviço totalizante e isolado, ele se distancia da sua missão primordial e isso gera uma contradição institucional que passa a produzir uma sensação de desgaste, sobrecarga e frustração que se volta de modo mais direto aos trabalhadores e trabalhadoras desses serviços.

Neste sentido, o trabalho em rede é uma estratégia fundamental para a efetivação desse modelo de cuidado (Bermudez e Siqueira-Batista, 2017). O trabalho em rede é produzido tanto na heterogeneidade das relações e práticas que se produzem dentro do serviço, como na variabilidade de conexões e parcerias estabelecidas com a comunidade e com outras políticas públicas (Brasil, 2011).

Quanto maior a diversidade de ações e parcerias agenciadas, maior é a potencialidade de produzir cuidados e vínculos. Acredita-se que a Rede de Atenção Psicossocial é uma possibilidade, ainda mais complexa, de superar a universalização que está na base do funcionamento do modelo manicomial (Brasil, 2015).

A esse respeito, cabe ressaltar as considerações de Foucault, que afirmou que:

a experiência moderna da loucura não pode ser entendida como uma figura total, que chegaria finalmente, assim, à sua verdade positiva; é uma figura fragmentária que, de forma abusiva, se apresenta de forma exaustiva; é um grupo desequilibrado por tudo o que lhe falta, isto é, por tudo o que o esconde. Sob a ciência crítica da loucura e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma consciência trágica afogada não para de ficar acordada (Foucault, 1997, p.28-29).

Enquanto o modo de cuidado proposto pelo modelo manicomial tenta absorver e resolver todos os processos vitais e subjetivos, conduzindo-os todos para dentro dos muros da instituição, apoiar a produção de novos modos de cuidar passa pela produção de um movimento diferente que se volta para fora, para o trabalho em rede.

Assim, em vez de centralizar e isolar, propõe-se um tipo de cuidado que busca expandir as relações e conexões do sujeito, seus processos de subjetivação e articulação com novos territórios existenciais.

6.3 O CAPS como instituição parceira do sujeito

O cuidado oferecido no CAPS consiste em uma prática clínico-institucional em que o vínculo terapêutico da pessoa em sofrimento pode se estabelecer com um profissional, com a equipe, o serviço ou uma rede de serviços. Nestes casos, o CAPS passa a servir de referência e se tornar um ponto estratégico e de confiança em que as pessoas usuárias podem buscar uma atenção às suas necessidades, servindo como uma presença discreta, cuidadosa e respeitosa que expressa que os usuários e usuárias tem com quem contar em seu processo de construção subjetiva.

O CAPS e seus profissionais desempenham uma função de parceiros do sujeito quando conseguem estabelecer um tipo de relação com as pessoas usuárias capaz de auxiliá-las a encontrar meios menos hostis para estar no mundo. Sabe-se que se alguém não faz este papel de parceira para as pessoas em sofrimento, o sujeito permanece rígido e solitário na árdua tarefa de se autoproteger. A autoproteção é o tipo de recurso que o sujeito dispõe para se defender de um ambiente que ele vive como ameaçador.

Os trabalhadores do CAPS podem, portanto, colaborar com o trabalho dos usuários e usuárias, auxiliando-os na compreensão dessas manifestações subjetivas, considerando-as como verdadeiras pistas que oferecem a possibilidade de construção de uma singularidade, pois é mediante essa construção que parte desses sujeitos poderão estabelecer algum tipo de adesão ao Outro.

Ocupar essa posição de parceria não é uma tarefa fácil, pois este trabalho costuma mobilizar angústia nos serviços, em seus profissionais, nas pessoas e comunidade mais próximas. Assim, deve-se reconhecer que os profissionais e serviços de saúde mental são a principal matéria prima do processo de cuidado e a busca de melhoria da qualidade de vida dos usuários e usuárias depende em grande parte do trabalho humano desenvolvido por eles.

A produção de práticas no CAPS requer processos de trabalho flexíveis que privilegiam movimentos de singularização dos sujeitos. O trabalho do CAPS precisa ser organizado de forma que dentro das atividades cotidianas haja tempo e espaço não só para as práticas já agendadas pelo serviço, mas também para o imprevisível.

Soma-se a isso, o grande acúmulo de trabalho nos CAPS, devido ao número insuficiente de serviços e ao aumento progressivo da demanda por esse tipo de atenção, que acaba gerando riscos de realização de práticas iatrogênicas pautadas na medicalização e judicialização que contradizem as práticas singulares preconizadas pelo modelo de Atenção Psicossocial.

Assim, outra tarefa em que todos precisam se envolver é com o compromisso de levantar questões sobre as necessidades e especificidades que esse tipo de cuidado implica, assim como a importância de construir mais serviços e contratação de mais profissionais para atender a população.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de transformação dos modos de produzir cuidados em Saúde Mental buscou deslocar o enfoque da esfera privada para a pública, do plano individual para o agenciamento coletivo, da posição de neutralidade para uma postura de implicação e comprometimento com as pessoas, suas necessidades, seus direitos humanos e seu saber sobre si mesmas.

Vale lembrar que o estabelecimento de vínculos com os serviços e as equipes é um dos resultados mais potentes que a prática institucional do CAPS pode produzir, pois através da confiança as pessoas usuárias se sentem reconhecidas como sujeitos à sua maneira e medida.

Reitera-se a importância dos membros das equipes dos CAPS reconhecerem e serem reconhecidos como sujeitos capazes e habilitados para a tarefa de lidar com os usuários e usuárias, compreendendo que seu fazer é mais potente e eficaz no cuidado do que outros recursos como a hospitalização e a medicalização das pessoas em sofrimento.

Quanto aos psicólogos e psicólogas, recomenda-se o exercício de uma prática crítica no CAPS que deve ser tecida junto com seus demais colegas de trabalho, buscando, por meio da prática institucional e da prática a dois, produzir um lugar simbólico e de produção de emancipação e cidadania para as pessoas usuárias.

A partir do lugar de intercessor e de parceria estabelecida entre a equipe, a instituição, os usuários e usuárias e a comunidade acredita-se que é possível criar maneiras menos dolorosas de estar e habitar o mundo, estabelecendo vínculos sociais capazes de retirar os sujeitos em sofrimento de seu trabalho subjetivo solitário e seus movimentos isolados de autoconstrução e defesa.

Portanto, o que incentiva a formação de uma instituição como o CAPS e de um modelo de cuidado como a Atenção Psicossocial é a possibilidade de cumprir o papel de acolher e cuidar de quem ali chega, orientando-o para o encontro com o Outro em um trabalho de parceria e um espaço no qual se sintam e protegidos e respeitados na sua diferença.

 

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