ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Atuação de psicólogos no atendimento psicoterápico de homens vítimas de abuso sexual

Psychologists' role in psychotherapeutic care for men who are victims of sexual abuse

El papel de los psicólogos en la atención psicoterapéutica a hombres víctimas de abuso sexual

Fernanda Rocha Alves Rodrigues1; Carlos Manoel Lopes Rodrigues2; Rafael Jefferson de Oliveira3; Alexandre Cavalcanti Galvão4

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v15n28.0006

1. Psicóloga pelo Centro Universitário de Brasília - CEUB
2. Psicólogo pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Mestre e Doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB. Professor Adjunto do Centro Universitário de Brasília - CEUB. Endereço eletrônico: prof.carlos.manoel@gmail.com
3. Psicólogo pela Universidade de Brasília - UnB, Mestre e Doutorando em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB
4. Psicólogo pelo Centro Universitário de Brasília - CEUB, Mestre em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB. Professor Adjunto do Centro Universitário de Brasília - CEUB

Resumo

Esta pesquisa objetivou compreender como os profissionais da psicologia clínica lidam com a demanda de atendimento a homens adultos vítimas de abuso sexual. O estudo adotou uma abordagem qualitativa e exploratória, envolvendo a participação de cinco psicólogos e oito psicólogas com atuação em psicologia clínica com adultos que responderam a uma entrevista semiestruturada. As entrevistas foram submetidas à análise lexical com auxílio do software IRAMUTEQ. Foram identificadas quatro classes temáticas: 1) práticas profissionais adotadas; 2) dificuldades relacionadas à formação e falta de material; 3) possíveis preconceitos e 4) dificuldade de assumir a violência por parte das vítimas homens. Evidenciou-se a necessidade de maior atenção ao campo de atuação em termos de pesquisas, desenvolvimento de práticas específicas e melhoria da formação sobre o tema.

Palavras-chave: Violência sexual de homens. Formação do psicólogo. Psicologia Clínica.


Abstract

This research aimed to understand how clinical psychology professionals handle the demand for the treatment of adult men who are victims of sexual abuse. The study adopted a qualitative and exploratory approach, involving the participation of five male psychologists and eight female psychologists working in clinical psychology with adults, who responded to a semi-structured interview. The interviews were subjected to lexical analysis using the IRAMUTEQ software. Four thematic classes were identified: 1) adopted professional practices; 2) difficulties related to training and lack of materials; 3) possible biases and 4) difficulty in acknowledging the violence on the part of male victims. The need for greater attention to the field in terms of research, the development of specific practices, and the improvement of training on the subject was evident.

Keywords: Male sexual violence. Psychologist training. Clinical Psychology.


Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo comprender cómo los profesionales de la psicología clínica abordan la demanda de tratamiento de hombres adultos que son víctimas de abuso sexual. El estudio adoptó un enfoque cualitativo y exploratorio, con la participación de cinco psicólogos y ocho psicólogas que trabajan en psicología clínica con adultos y que respondieron a una entrevista semiestructurada. Las entrevistas se sometieron a un análisis léxico utilizando el software IRAMUTEQ. Se identificaron cuatro clases temáticas: 1) prácticas profesionales adoptadas; 2) dificultades relacionadas con la formación y la falta de materiales; 3) posibles prejuicios y 4) dificultad en reconocer la violencia por parte de las víctimas masculinas. Se evidenció la necesidad de prestar una mayor atención al campo en términos de investigación, el desarrollo de prácticas específicas y la mejora de la formación sobre el tema.

Palabras clave: Violencia sexual masculina. Formación de psicólogos. Psicología Clínica.

 

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial da Saúde define a violência sexual como qualquer ato sexual, tentativa de consumação do ato sexual, exibicionismo, comentários, insinuações sexuais não desejadas, ações para comercializar ou utilizar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa mediante coação, independente da relação da pessoa com a vítima. Nessa perspectiva, percebe-se que novas formas de abuso têm surgido principalmente com o advento das inovações tecnológicas; porém, todas essas formas têm em comum a violação corporal de outra pessoa, direta ou indiretamente (ONU Brasil, 2018). Independente da forma, o abuso sexual tem a potencialidade de produzir prejuízos de diferentes ordens e gravidades, dependendo de fatores como características do abuso, da vítima, da família, entre outros (Del Bianco e Tosta, 2021; Hall, Healy e Galovski, 2019; Hamilton, 2022).

Dentro desse cenário, a maioria dos estudos sobre abuso sexual apresenta como objeto de investigação as mulheres vítimas do abuso, sendo ainda escassos os estudos que abordam homens vítimas. Essa situação pode gerar uma invisibilidade do fato, além de influenciar em dados demográficos (Ellis, 2002). Por exemplo, as pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública fazem um recorte do índice de violência sexual focado na violência contra a mulher, porém não mostra os dados da população que sofreu essa violência sexual e não se enquadra na categoria mulher. De acordo com uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Instituto Liberta em 2022 para identificação da ocorrência de casos de abuso na população brasileira, um em cada três brasileiros relata ter sido vítima de agressão sexual física ou verbal durante a infância ou adolescência. Os resultados do levantamento nacional revelam que 32% dos entrevistados admitiram ter sofrido agressões de natureza sexual antes dos 18 anos de idade (Caseff, 2022).

Donne et al. (2018), ao analisarem os dados do National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS) identificaram que, aproximadamente, 1,4% dos homens foram vítimas de penetração forçada completa/tentativa ao longo de suas vidas, enquanto outros 22% sofreram outras formas de violência sexual. Nesse mesmo contexto, estima-se que quase 4% dos homens relataram ter vivenciado agressão sexual em algum momento da vida adulta (Walfield, 2018).

Indivíduos pertencentes a minorias de gênero possuem alto risco de serem vítimas de violência sexual (Buckinx, Hogg e Vaughn, 2022; Flores et al., 2022; Messinger e Koon-Magnin, 2019; Rothman, Exner e Baughman, 2011). Estudos e avaliações das necessidades dessas populações indicam que cerca de 50% das pessoas transexuais relatam ter vivenciado atividade sexual indesejada (Messinger e Koon-Magnin, 2019; Lombardi et al., 2001; Stotzer, 2009). Estudos nos Estados Unidos relativos à violência contra pessoas transexuais indicam que entre 12% e 27% dos entrevistados sofreram violência sexual e, de 30% a 42%, foram vítimas de agressão física antes de chegarem à idade adulta, enquanto 12% e 14% das pessoas foram agredidas sexualmente simplesmente por serem transgêneros ou por não se conformarem com as normas de gênero (Flores et al., 2022; Messinger e Koon-Magnin, 2019; Santos e Sposato, 2019).

Ainda nos Estados Unidos, nos grupos que envolvem identidade de gênero e orientações sexuais, casos de estupro e agressão sexual são frequentemente subnotificados, com 65% desses crimes não sendo denunciados à polícia entre os anos de 2006 e 2010 (Langton et al., 2012), situação que se manteve em estudos mais recentes como o de Flores et al. (2019), que analisou os dados relativos à violência, incluindo sexual, contra a população LGBT nos anos de 2017 a 2019 no Estados Unidos. No contexto sul-americano, os dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ([CIDH] 2015) mostram que a ocorrência de violência sexual nesse grupo chegou a 27,5%. A vulnerabilidade dessa população está associada à condição geral de discriminação na sociedade e consequentes barreiras à procura e acesso à ajuda e silenciamento das denúncias (Messinger e Koon-Magnin, 2019).

De acordo com o NISVS, quando homens são vítimas de estupro, há uma maior probabilidade de que o agressor seja outro homem. Os homens compõem a maioria (79,3%) dos perpetradores de estupro masculino e representam quase metade (43,6%) dos perpetradores de contato sexual indesejado (Breiding, Chen e Black, 2014).

De acordo com Walfield (2018), mitos como o da masculinidade pode interferir nas denúncias de estupro masculino de algumas maneiras. Em muitas culturas, os homens costumam ser socializados para acreditar que devem ser fortes, viris e a estarem no controle. Isso pode tornar mais difícil para eles, enquanto sobreviventes de estupro, relatarem suas experiências ou procurarem ajuda, pois podem se sentir envergonhados, embaraçados ou emasculados pelo acontecido (Silva et al., 2020).

Além disso, muitas vezes existe um estereótipo de que os homens são os perpetradores da violência sexual e as mulheres são as vítimas (Walfield, 2018). Isso pode tornar ainda mais desafiador para os sobreviventes do sexo masculino se apresentarem e relatarem suas experiências, pois podem ter medo de não serem acreditados ou levados a sério. Existem expectativas sociais sobre o que significa ser um homem de verdade e como os homens devem responder a experiências traumáticas. Os homens podem se sentir pressionados a resistir e guardar seus sentimentos para si mesmos, em vez de buscar apoio ou ajuda profissional (Pires, 2021).

Apesar da presença de diversas expressões de masculinidade, existe um modelo considerado apropriado que está fundamentado em um padrão hegemônico baseado em construções patriarcais (Depraetere et al., 2020). Esse modelo é caracterizado por atributos como heterossexualidade, virilidade, distanciamento emocional, honra, ser provedor do lar, coragem, força, assertividade, competitividade, entre outros (Silva et al., 2020). Esses construtos têm um impacto significativo na forma como as relações interpessoais se conformam na sociedade, orientando os homens a buscarem a preservação de uma posição de poder e dominação, seja em contextos políticos, familiares ou no ambiente de trabalho. Todos esses fatores podem tornar difícil para homens sobreviventes de estupro relatar suas experiências e acessar os recursos e o apoio de que precisam (Kiss et al., 2020; Jansen, 2023).

As repercussões da violência sexual na saúde mental podem ser profundamente impactantes em diversos aspectos, tanto a curto, médio quanto a longo prazo e, em alguns casos, podem perdurar de forma permanente. Os efeitos devastadores dessa experiência traumática podem se manifestar por meio de uma ampla gama de consequências emocionais e psicológicas. Indivíduos que sobrevivem a tal violência frequentemente enfrentam sentimentos de medo, tristeza, ansiedade, raiva e hostilidade (Hall, Healy e Galovski, 2019).

Além disso, é comum que se sintam compelidos ao isolamento, afastando-se de relacionamentos e do suporte social. Muitas vezes, essas experiências também desencadeiam comportamentos sexuais inapropriados, uma manifestação adicional das profundas cicatrizes psicológicas deixadas pelo trauma (Florentino, 2015). O trauma pode ser considerado tanto como um desencadeador, uma ação, um agente ou mecanismo, quanto como um resultado (Weathers e Keane, 2007). O trauma psicológico emerge a partir de um evento, uma sequência de eventos ou um conjunto de circunstâncias que um indivíduo vivencia como prejudicial, seja física ou emocionalmente, representando uma ameaça à vida (Cameoka et al., 2022; Isobel, Goodyear e Foster, 2019; Weathers e Keane, 2007). Nesse contexto, o abuso sexual se configura como essa experiência que tem efeitos adversos de longa duração sobre o funcionamento e o bem-estar mental, social e emocional da pessoa (Del Bianco e Tosta, 2021).

No Brasil, de acordo com a Norma Técnica do Ministério da Saúde (2015) sobre a atenção humanizada às pessoas em situação de violência sexual, é fundamental garantir um acompanhamento psicológico e social contínuo em serviços de saúde de referência, estendendo-se além do primeiro atendimento. Apesar de indicar a necessidade do acompanhamento psicológico, a referida Norma focaliza os serviços integrados de atendimento no momento de identificação da ocorrência do abuso sexual.

O atendimento psicológico a pessoas vítimas de violência sexual deve ser pautado pelas referências técnicas estabelecidas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Estas diretrizes visam a orientar a prática dos psicólogos, garantindo um apoio adequado e sensível às vítimas desse tipo de violência. As "Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na rede de proteção às crianças e adolescentes em situação de violência sexual", publicadas em 2020, estabelecem diretrizes específicas para o atendimento a esse público vulnerável. Há também o reconhecimento da necessidade de orientações específicas para outros grupos, como por exemplo, para população LGBTQIA+ (CFP, 2023), com destaque para a importância de abordagens sensíveis e culturalmente competentes ao atender a população LGBTQIA+ vítima de violência sexual. Contudo, é importante ressaltar que as principais referências técnicas fornecidas pelo CFP têm um foco considerável nas crianças e adolescentes, com menos ênfase em homens adultos.

No atendimento em psicologia clínica é importante, em um primeiro momento, estabelecer um ambiente de segurança e aceitação, a fim de que a pessoa adquira confiança para comunicar a agressão, bem como promover ações que envolvam o indivíduo e o seu ambiente para a superação das adversidades e, através de intervenção, auxiliar o mesmo a desenvolver-se adaptando-se à sociedade e tendo uma melhor qualidade de vida (Ellis, 2002; Florentino, 2015; Hamilton, 2022). Nos atendimentos, é importante avaliar se há preparo para a escuta desse abuso sem desmerecer o mesmo, sem utilizar da homossexualidade como justificativa ou prerrogativa para o abuso e não enquadrar como homossexual o homem que foi submetido ao abuso (Jansen, 2023). Especial atenção às possíveis interferências do gênero do profissional no atendimento, como salientado por Jansen (2023): fatores como julgamentos podem ser mais percebidos na atuação de psicólogos do sexo masculino e maior tendência dos pacientes se sentirem envergonhados frente a psicólogas mulheres.

Em situações de estupro, o objetivo do atendimento psicológico clínico com adultos é ajudar a pessoa a recuperar o desejo de se relacionar com os outros. Nessa fase do processo terapêutico, é possível que o paciente estabeleça novos objetivos, interesses e escolhas profissionais ou afetivas. O trabalho psicoterapêutico visa a possibilitar a pessoa a retomar o controle sobre sua vida e construir um futuro mais satisfatório (Cowan, Ashai e Gentile, 2020; Silva e Vagostello, 2017). Conforme o tratamento progride, é esperado que o paciente consiga processar, em certa medida, a violência que sofreu e permita que o trauma deixe de ser sentido como um estado de perigo iminente. Em vez disso, é possível que seja lembrado como um evento do passado, sem o poder de determinar suas condutas e atitudes na vida. No entanto, caso não haja uma intervenção psicológica adequada, que considere a vítima de violência sexual como um ser integral, as consequências desse trauma podem persistir e se agravar ao longo do tempo (Hohendorff, Habigzang e Koller, 2015; Silva e Vagostello, 2017).

Além da psicoterapia individual, o trabalho grupal também se revela eficaz no tratamento, uma vez que o grupo favorece a comunicação da própria história e a troca de experiências. A verbalização da vivência traumática e a identificação com outros homens auxiliam na progressiva integração de sentimentos, na elaboração e na ressignificação do trauma, permitindo que novos objetivos e perspectivas de vida sejam estabelecidos (Donne et al., 2018; Hamilton, 2022). De acordo com Donne et al. (2018), a literatura sobre intervenção psicológica com vítimas de estupro entende que o trabalho psicoterápico deve privilegiar a promoção da resiliência. Em outros termos, espera-se que o paciente elabore e reavalie, gradativamente, a experiência traumática.

No entanto, embora seja uma questão de importância crítica, a atenção dada à violência sexual, em especial quando direcionada a homens, tem sido historicamente limitada em muitos contextos, incluindo a formação de profissionais de psicologia (Jansen, 2023; Walfield, 2018). No Brasil, como em muitos outros lugares, observa-se uma lacuna notável na formação de psicólogos em relação a essa realidade complexa (Pelisoli e Dell'Aglio, 2015; Penso et al., 2008). O currículo acadêmico da graduação e da maioria dos programas de pós-graduação em psicologia frequentemente carecem de conteúdos específicos que abordem o abuso sexual em geral, muito menos o masculino, o que pode resultar em profissionais menos preparados para lidar com casos dessa natureza (Silveira, Patias e Hohendorff, 2022).

Ante esse cenário, o objetivo desta pesquisa é compreender como profissionais da psicologia clínica enfrentam a demanda de atendimento de homens adultos vítimas de abusos sexuais e evidenciar suas percepções ante essa realidade. Esse estudo se justifica mediante a escassez de literatura e discussão sobre o abuso sexual de homens, bem como a possível falta de abordagem adequada a essa temática nos cursos de graduação em psicologia. Portanto, esta pesquisa busca preencher uma lacuna no conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento de estratégias de formação e capacitação de profissionais da psicologia que permitam uma abordagem mais sensível e eficaz em relação aos homens vítimas de abuso sexual. Além disso, pretende-se identificar as possíveis barreiras e desafios enfrentados pelos psicólogos ao lidar com essa população, visando à elaboração de diretrizes e políticas que promovam uma assistência mais inclusiva e compassiva para todos os sobreviventes de abuso sexual, independentemente de seu gênero.

 

1 MÉTODO

A presente pesquisa adota uma abordagem qualitativa e exploratória para investigar a atuação e percepção de psicólogos no atendimento de homens vítimas de abuso sexual. A abordagem qualitativa foi escolhida devido à natureza complexa e multifacetada desse fenômeno, permitindo uma compreensão mais aprofundada das experiências, percepções e práticas dos psicólogos envolvidos (Creswell, 2014). Além disso, a abordagem exploratória reflete a natureza ainda incipiente da pesquisa nesse campo específico da prática psicoterápica, buscando identificar tendências, desafios e possíveis lacunas na assistência psicológica a essa população, contribuindo para o avanço do conhecimento e aprimoramento das práticas clínicas.

1.1 Participantes

Os participantes foram selecionados a partir da técnica não probabilística de amostragem snowball, que consiste na identificação de um informante-chave dentro da população de interesse, que fornece informações e recomenda outros participantes. O pesquisador continua a adicionar novos entrevistados à amostra, questionando-os sobre outros membros, criando uma bola de neve de participantes (Vinuto, 2014). Essa abordagem é útil para acessar grupos difíceis de alcançar, mas pode introduzir viés na seleção de entrevistados, tornando-a mais adequada para estudos exploratórios em que se busca uma compreensão aprofundada de um grupo específico (Leighton et al., 2021; Vinuto, 2014).

Como critério de inclusão foi adotado: ter atendido ou estar atendendo em processo psicoterápico de caráter não eventual, homem adulto vítima de abuso sexual. A partir do método de amostragem, foram contatados no total 20 profissionais, sendo que três não responderam ao contato inicial, quatro responderam, porém, não atendiam ao critério de inclusão e indicaram um outro profissional a ser contatado. Apenas um profissional recusou-se a participar da pesquisa e a indicar outro participante. Assim, a pesquisa contou com a participação final de cinco psicólogos e oito psicólogas, com média de idade entre 35 e 40 anos (DP = 3,45). O tempo médio de exercício profissional é de 7,34 anos (DP = 3,50), com exercício prioritariamente em psicologia clínica e distribuídos em três Unidades da Federação: Distrito Federal (n= 4; 30,77%), Minas Gerais (n = 3; 23,08%) e São Paulo (n = 6; 46,15%).

1.2 Instrumento

Para coletar os dados, utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada, com 14 perguntas em cinco grupos. O primeiro grupo de perguntas relacionadas à trajetória profissional e atuação atual em psicologia clínica (por exemplo: "Para começar, poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória inicial na área da psicologia clínica? Como você se envolveu nesse campo?"). O segundo grupo de perguntas teve por foco explorar as questões técnicas e de abordagem terapêutica adotada pelos entrevistados no atendimento de homens vítimas de abuso sexual. O terceiro grupo buscou compreender a experiência no atendimento desses homens. Por fim, o quarto grupo de perguntas centrou-se nos desafios identificados e como foram superados pelos profissionais no atendimento, sendo complementado pelo quinto grupo de perguntas centrado nas dificuldades encontrados na prática profissional com essa população.

Iniciar a entrevista com perguntas relacionadas à formação acadêmica dos participantes foi uma estratégia deliberada para estabelecer uma base sólida de compreensão das experiências e perspectivas individuais. A escolha dessa abordagem de entrevista proporcionou flexibilidade para explorar diferentes aspectos do fenômeno em questão, permitindo uma compreensão mais aprofundada dos dados coletados.

1.3 Procedimento

Inicialmente, foi feito contato com os potenciais participantes para exposição dos objetivos da pesquisa e convite à participação. Este convite foi feito, em princípio, nas redes sociais e, partir do contato com os primeiros participantes efetivos da pesquisa, foram sendo solicitadas as indicações de outros possíveis participantes seguindo os princípios da técnica snowball (Leighton et al., 2021; Vinuto, 2014). Àqueles que aceitaram participar foi enviado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e agendada uma entrevista on line. As entrevistas foram realizadas com suporte da ferramenta Google Meet™, gravadas e desgravadas. Este estudo foi aprovado sob o número CAAE nº: 46095621.9.0000.5540.

1.4 Análise de dados

Após a coleta das entrevistas, os dados foram submetidos a uma análise qualitativa utilizando a ferramenta Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ, Ratinaud, 2009). A escolha da análise qualitativa utilizando a ferramenta IRAMUTEQ para a análise dos dados coletados foi embasada na vantagem que a análise lexical oferece. A análise lexical é uma abordagem poderosa para explorar os dados qualitativos, pois permite uma compreensão mais aprofundada dos termos e palavras utilizados pelos participantes nas entrevistas (McKee, 2003). No contexto da pesquisa sobre a atuação de psicólogos no atendimento a homens vítimas de abuso sexual, a análise lexical possibilita a identificação de palavras-chave, frases significativas e padrões de linguagem que podem revelar nuances importantes nas experiências e percepções dos entrevistados.

Além disso, a utilização da ferramenta IRAMUTEQ oferece a vantagem de combinar abordagens estatísticas e de mineração de dados na análise textual. Isso permite uma análise mais rigorosa e objetiva dos dados, ajudando a identificar tendências, relações e temas emergentes de maneira eficaz (McKee, 2003; Faiad, Rodrigues e Lima, 2021). A ferramenta também facilita a organização e visualização dos resultados, tornando mais acessível a interpretação dos achados qualitativos. Portanto, a escolha da análise qualitativa com a ajuda do IRAMUTEQ ressalta a importância de uma abordagem abrangente e sistemática na investigação do tema (Faiad, Rodrigues e Lima, 2021), promovendo uma compreensão mais profunda e rica das experiências dos psicólogos e dos homens vítimas de abuso sexual.

O processo de análise envolveu etapas de organização e pré-processamento dos dados textuais, a construção de categorias ou temas emergentes, a identificação de frequências e associações de palavras-chave relevantes, bem como a interpretação dos resultados obtidos. Para tanto, foi realizada a Classificação Hierárquica Descendente (CHD) para a análise das respostas coletadas. A CHD é uma técnica estatística comumente empregada em análises de dados textuais e qualitativos para identificar padrões, temas e estruturas latentes nos textos (Reinert, 1990). A CHD se baseia em medidas de similaridade entre as respostas (qui-quadrado- χ2), como a análise de frequência de palavras-chave, termos ou frases comuns, para agrupar as respostas que possuem maior afinidade textual (Camargo e Justo, 2003; Faiad, Rodrigues e Lima, 2021). Isso permite a identificação de padrões de linguagem e de conteúdo que podem não ser imediatamente aparentes na leitura individual das respostas.

Em adição, para avaliar a influência do gênero dos participantes na composição das classes identificadas via CHD, foi realizado o cálculo da distância do qui-quadrado a partir da qual é gerada uma representação gráfica da diferença entre distribuições de frequência associadas a variáveis categóricas, nesse caso, o gênero dos participantes (masculino e feminino) e as classes temáticas geradas por meio da análise dos dados qualitativos (Faiad, Rodrigues e Lima, 2021).

 

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os participantes foram convidados a relatar os tipos de abusos que já haviam atendido em suas práticas profissionais como psicólogos. Os resultados desses relatos foram compilados e estão apresentados na Tabela 1, que mostra as taxas de atendimento para três categorias distintas de abuso: abuso sexual na infância, abuso sexual na vida adulta e assédio/abuso sexual no trabalho.

 

 

Mais de 60% dos casos de abuso atendidos pelos participantes apresentaram um histórico de abuso na infância. Estes dados estão em linha com as prevalências já indicadas na literatura sobre a maioria dos casos de abuso contra homens ocorrer na infância (CIDH, 2015; Breiding, Chen e Black, 2014; Del Bianco e Tosta, 2021; Flores et al., 2022). Esse alto índice de recorrência, conforme apontado pelos números, ressalta a magnitude do problema do abuso sexual infantil e seu impacto ao longo da vida, uma vez que estes homens vêm a procurar ajuda já na vida adulta (Ellis, 2002; Depraetere et al., 2020; Donne et al., 2018).

Em relação à orientação sexual e identidade de gênero 69,23% dos homens atendidos faziam ou fazem parte de grupos minoritários quanto à orientação sexual. Isso ressalta a relevância de compreender a interligação entre abusos passados e as experiências de abuso na vida adulta – fator já apontado em estudos anteriores quanto à revitimização, bem como à situação de vulnerabilidade em que os homens que compõem minorias em termos de orientação sexual se encontram frente à violência sexual (Lombardi et al., 2001; Rothman, Exner e Baughman, 2011; Stotzer, 2009).

A Classificação Hierárquica Descendente (CHD) das entrevistas resultou na retenção de 80,45% do texto produzido, indicando a adequação da análise (Camargo e Justo, 2003), e resultando em quatro Classes, conforme representado no dendograma (Figura 1). Utilizando do teste qui-quadrado, o CHD avaliou associações entre as formas lexicais, formando classes de equivalência e proporcionando a visualização da intensidade associativa entre elas. As classes foram denominadas como Classe 1 - Práticas profissionais adotadas; Classe 2 - Dificuldades relacionadas à formação e falta de material; Classe 3 - Possíveis preconceitos e Classe 4 - Dificuldade de assumir a violência por parte das vítimas homens.

 


Figura 1: Classificação Hierárquica Descendente. Fonte: autoria própria.

 

A Classe 1 - Práticas profissionais adotadas: identifica as abordagens e estratégias utilizadas pelos psicólogos no atendimento a vítimas de violência sexual masculina, como o uso de terapias cognitivo-comportamentais, técnicas de acolhimento, técnicas de resiliência, abordagens centradas no trauma, entre outras. Os resultados também indicam desafios específicos enfrentados pelos psicólogos ao trabalhar com vítimas masculinas, como a quebra de estereótipos de masculinidade. Nessa categoria, as palavras identificadas incluem termos relacionados a diferentes abordagens terapêuticas utilizadas pelos psicólogos, como "terapia cognitivo-comportamental", "terapia de apoio", "resiliência", "abordagem centrada no trauma", entre outros. Além disso, palavras relacionadas a estratégias específicas, técnicas ou instrumentos de avaliação poderiam surgir, dependendo das práticas adotadas pelos entrevistados. Os trechos a seguir exemplificam essa classe:

Sempre busco promover um ambiente acolhedor para criar um ambiente seguro onde os homens possam compartilhar suas experiências de violência sexual sem julgamentos (Participante 12).

Na minha prática, utilizo a terapia narrativa para ajudar os homens a reconstruírem suas histórias de vida, dando voz às experiências de violência sexual e buscando a ressignificação (Participante 6).

Priorizo a criação de um ambiente profundamente acolhedor e livre de julgamentos, especialmente quando se trata de homens que compartilham suas experiências de violência sexual. Acredito que é essencial oferecer um espaço seguro, onde meus clientes possam se expressar abertamente, sem receio de serem julgados (Participante 7).

Esta classe indica a percepção dos participantes da necessidade de práticas profissionais sensíveis e adequadas a essa população, reconhecendo as particularidades e desafios enfrentados por homens vítimas de violência sexual. Observou-se uma tendência à indicação de abordagens e técnicas que são mais comuns no tratamento de casos de violência em geral e de eventos traumáticos (Cowan, Ashai e Gentile, 2020; Hamilton, 2022). A presença de modelos de intervenção baseados nas Terapias Cognitivo-Comportamentais (TCC), Terapia de Exposição Narrativa, Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR) nos relatos coincidem com achados de outros estudos que avaliaram as abordagens utilizadas no tratamento de casos de abuso sexual e de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (cameoka et al., 2022; Cowan, Ashai e Gentile, 2020; Kiss et al., 2020; Hohendorff, Habigzang e Koller, 2015), como ressaltado nos trechos:

Tenho utilizado uma abordagem integrativa, combinando técnicas de EMDR e terapia de grupo para abordar os traumas e promover a melhora (Participante 10).

Eu costumo utilizar a abordagem cognitivo-comportamental no tratamento de vítimas de violência sexual masculina. Trabalhamos na identificação de crenças distorcidas e no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento (Participante 3).

Tenho adotado uma abordagem centrada no trauma, como a exposição narrativa, ajudando meus pacientes a reconhecer e processar os impactos emocionais da violência sexual vivenciada (Participante 2).

As dificuldades relacionadas à formação e falta de material foram identificadas como a temática da Classe 2 - As dificuldades enfrentadas pelos psicólogos devido à falta de formação adequada sobre a violência sexual masculina. Os termos e as falas se referem à ausência de conteúdos específicos nos currículos de graduação e pós-graduação em psicologia, bem como a escassez de materiais e recursos atualizados sobre o tema.

Nesta categoria, as palavras identificadas incluem termos relacionados a questões relativas à formação, como "currículo", "pós-graduação", "capacitação", "educação continuada", "ausência de conteúdos específicos", entre outros. Além disso, palavras relacionadas à falta de material ou recursos disponíveis, como "material didático", "publicações atualizadas", "bibliografia", apresentaram relevância. Os termos identificados com significativos podem ser exemplificados a partir das seguintes falas:

Percebo uma lacuna na formação acadêmica em relação à violência sexual contra homens. Pouco se discute sobre esse tema nos currículos de graduação e pós-graduação em Psicologia (Participante 12).

A ausência de conteúdos específicos sobre violência sexual masculina nas disciplinas nos deixa despreparados para lidar com essa questão em nossas práticas (Participante 6).

Acredito que a formação em psicologia clínica precisa incluir disciplinas que abordem a violência sexual contra homens de maneira mais abrangente. Isso nos prepararia melhor para atender às necessidades desses pacientes (Participante 1).

Uma das principais dificuldades identificadas diz respeito à formação dos psicólogos. Fica evidenciada uma lacuna significativa nos currículos de graduação e pós-graduação em psicologia, com pouca abordagem específica sobre a violência sexual masculina. Esta falta de formação adequada pode comprometer a capacidade dos profissionais de identificar e lidar com os casos de violência sexual entre homens. Esta lacuna na formação representa um desafio substancial, uma vez que a violência sexual afeta tanto homens quanto mulheres, e os psicólogos desempenham um papel fundamental no apoio às vítimas e na prevenção desse tipo de violência (Pelisoli e Dell'Aglio, 2015; Penso et al., 2008). Ainda nesta Classe, os participantes indicaram a dificuldade acesso a material específico sobre o tema:

A falta de material didático atualizado dificulta o acesso a informações relevantes e estratégias eficazes para lidar com casos de violência sexual masculina (Participante 10).

O material que encontro é quase sempre em inglês, aí fica dependendo da nossa vontade mesmo de correr atrás (Participante 1).

O que faço é ler as referências do Conselho sobre os temas parecidos, mas não achei nada muito específico para homens adultos (Participante 4).

É evidente que a falta de recursos específicos para lidar com a violência sexual masculina é uma questão que merece nossa atenção. A carência de material didático atualizado, a barreira linguística e a falta de recursos específicos para homens adultos representam um desafio significativo. Portanto, há uma necessidade clara de revisão e aprimoramento dos programas de formação em psicologia, bem como maior investimento na produção de material, a fim de garantir que os futuros profissionais estejam bem preparados para lidar com a complexidade dessa realidade (Silveira, Patias e Hohendorff, 2022).

A Classe 3 foi denominada de Possíveis preconceitos, uma vez que congrega a existência de preconceitos e estereótipos relacionados à violência sexual contra homens e como isto afeta a abordagem dos psicólogos. Os resultados sugerem a presença de crenças culturais arraigadas, como a minimização da violência sofrida por homens, a negação de sua vulnerabilidade ou a desvalorização de sua experiência. E que podem levar a uma menor identificação e atenção aos casos de violência sexual masculina.

As palavras identificadas são termos relacionados a estereótipos e preconceitos, como "minimização", "negação da vulnerabilidade", "desvalorização da experiência", "crenças culturais", "papéis de gênero", "masculinidade", entre outros. As palavras relacionadas à discriminação ou estigma são observadas nas falas dos participantes:

Existe uma tendência cultural em minimizar a violência sexual sofrida por homens, muitas vezes considerando-a menos séria do que quando ocorre com mulheres (Participante 8).

Algumas pessoas ainda têm preconceitos arraigados, associando a violência sexual masculina a fragilidades ou insinuando que a vítima é menos masculina por ter passado por isso (Participante 13).

Em nossa sociedade, há estereótipos arraigados em relação à violência sexual contra homens. Muitas vezes, as vítimas são desacreditadas ou sua experiência é minimizada, o que pode dificultar o apoio necessário (Participante 7).

Estes resultados destacam a existência de preconceitos arraigados e estereótipos culturais que influenciam a abordagem dos psicólogos. Nesta classe também e ressaltada a postura dos profissionais em relação aos preconceitos:

É importante reconhecer nossos próprios preconceitos e estereótipos para garantir um tratamento adequado e livre de julgamentos para as vítimas masculinas (Participante 4).

O estigma social em torno da masculinidade muitas vezes faz com que os homens hesitem em buscar ajuda ou relatar casos de violência sexual. Como profissionais, devemos estar sensíveis a essas questões e criar um ambiente acolhedor (Participante 6).

Uma vez em que eu estava atendendo um paciente que passou por abuso sexual, e, olha, depois e percebi que não agi da melhor forma, para ser honesto. Em alguns momentos, acabei fazendo alguns comentários que, olhando agora, foram meio preconceituosos e insensíveis (Participante 2).

A minimização da violência sofrida por homens, a negação de sua vulnerabilidade e a desvalorização de sua experiência foram alguns dos preconceitos identificados. Estes fatores podem levar a uma menor identificação e atenção aos casos de violência sexual masculina, prejudicando o suporte adequado às vítimas como apontado no estudo de Donne et al. (2018) que identificaram a baixa confiança e identificação com os profissionais como uma das barreiras para a busca de auxílio profissional por parte de homens vítimas de abuso sexual.

Por fim, a Classe 4, identificada como Dificuldade de assumir a violência por parte das vítimas homens, indica as barreiras que as vítimas masculinas enfrentam ao assumir e relatar a violência sexual sofrida. Os resultados apontam o estigma social em torno da masculinidade, que muitas vezes leva à negação da vulnerabilidade masculina e à dificuldade de buscar ajuda (Ellis, 2002; Walfield, 2018). Também aborda a falta de recursos e suporte específico disponíveis para homens vítimas de violência sexual, o que pode dificultar a revelação do ocorrido (Depraetere et al., 2020).

Na Classe 4, as palavras identificadas congregam termos relacionados ao estigma associado à masculinidade, como "negação da vulnerabilidade masculina", "estigma social", "tabu", "preconceito", "autoimagem masculina", "pressões sociais", entre outros. Além disso, palavras relacionadas à falta de recursos e suporte específico para homens vítimas de violência sexual, como "recursos de apoio", "ajuda especializada", "disponibilidade de serviços", "invisibilidade". Estes termos são contextualizados nas falas dos profissionais como por exemplo:

Muitos homens enfrentam dificuldades para assumir e relatar a violência sexual que sofreram devido às pressões sociais relacionadas à masculinidade e à ideia de que devem ser sempre fortes e invulneráveis, ainda mais para terapeuta mulher como eu, né? (Participante 5).

O estigma associado a ser uma vítima e homem muitas vezes leva à negação da vulnerabilidade e à relutância em buscar ajuda profissional (Participante 12).

É importante abordar a questão da violência sexual masculina de forma sensível, oferecendo um espaço seguro para que os homens expressem suas emoções e medos, e compreendam que buscar ajuda não diminui sua masculinidade (Participante 1).

As barreiras enfrentadas pelas vítimas masculinas na hora de assumir a violência sofrida e buscar ajuda, em conjunto com o estigma associado à masculinidade, a pressão para negar a vulnerabilidade e a falta de recursos especializados foram identificados como fatores que dificultam a denúncia e a obtenção de apoio adequado (Depraetere et al., 2020; Walfield, 2018). Em adição, a falta de espaços institucionais destinados a esses homens foi ressaltada pelos participantes:

A falta de recursos específicos para homens vítimas de violência sexual contribui para a invisibilidade desses casos e dificulta a busca por apoio adequado (Participante 3).

A falta de serviços para homens vítimas de violência sexual é uma barreira significativa, por exemplo no SUS e nas delegacias (Participante 8).

Esses pacientes chegam pra gente após um longo percurso, porque eles não encontram nenhum lugar especializado que os acolha (Participante 1).

Essas barreiras ressaltam a necessidade de criar políticas e programas que abordem essas questões e promovam um ambiente seguro e acolhedor para as vítimas masculinas. O esforço das vítimas em ocultar a ocorrência das situações de abuso, na maioria das vezes, por estarem envolvidos pelo sentimento de vergonha combinado com o sentimento de culpa, tanto pode reforçar a chance de novas ocorrências do abuso se estiverem em risco quanto acaba por ajudar a endossar o tabu e a escassez de conscientização social em torno da violência sexual, em todas as faixas etárias (Hohendorff, Habigzang e Koller, 2015).

A análise da influência do gênero dos participantes na composição das classes, indicou que a Classe 4 - Dificuldade de assumir a violência por parte das vítimas homens - foi a mais afetada, sendo mais referida pelas psicólogas que pelos psicólogos (Figura 2). Essa observação ressalta uma potencial relevância do gênero dos profissionais de psicologia como um fator influenciador nas abordagens e perspectivas adotadas no atendimento a homens vítimas de abuso sexual. Jansen (2023) aponta para a necessidade de mulheres no atendimento de homens ficarem atentas a questões que possam emergir nos atendimentos de homens em função da sua posição de gênero, por outro lado Pfeiffer et al. (2020) não encontraram influência do gênero do terapeuta no processo de atendimento de crianças e adolescentes com Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Tendo em vista que não foram identificados estudos anteriores nesse contexto específico, esse achado sugere a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre como as psicólogas e os psicólogos abordam essa questão sensível de maneira potencialmente diferenciada e como isso é percebido pelos pacientes.

Com base nos resultados obtidos, é fundamental estabelecer recomendações técnicas para a prática profissional nessa área. A exemplo das referências técnicas já existentes (CFP. 2020; 2023) há que se considerar as peculiaridades dessa população quanto ao reconhecimento de sua situação e necessidades de atendimento para atualização das referências técnicas existentes ou criação de documentos específicos.

Neste contexto, a promoção de programas de formação focados na violência sexual masculina, tanto para profissionais da saúde como para o público em geral, pode contribuir significativamente para a conscientização e desmistificação desse tópico. Tais programas podem ajudar a reduzir o estigma associado às vítimas masculinas e fornecer habilidades para a identificação e apoio adequado a esses indivíduos.

É igualmente importante a expansão do acesso a serviços de apoio especializados, a fim de garantir que vítimas recebam o suporte necessário para lidar com o trauma decorrente da violência sexual. Este é um aspecto crítico e requer cuidadosa consideração na formulação de políticas públicas.

Da mesma forma, a pesquisa contínua sobre a violência sexual masculina é essencial para uma compreensão mais profunda das consequências e dos desafios enfrentados pelas vítimas. A produção do conhecimento na área é fundamental para embasar a formulação de políticas informadas por evidências.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa qualitativa explorou a questão do atendimento psicológico a homens vítimas de violência, a partir das entrevistas realizadas com psicólogas e psicólogos que atendem a esse público. Os resultados indicaram várias questões relevantes relacionadas às práticas profissionais, dificuldades enfrentadas pelos psicólogos, barreiras para denúncia e apoio, além de preconceitos e a dificuldade de assumir a violência por parte das vítimas masculinas. Assim, há a necessidade de uma abordagem sensível e direcionada às vítimas masculinas de violência sexual. Os psicólogos desempenham um papel crucial no suporte a esses indivíduos. Recomenda-se, pois, que adotem práticas que incluam abordagens terapêuticas apropriadas.

No contexto das ações práticas, há várias indicações para diferentes partes envolvidas. Para os psicólogos, é importante buscar capacitação específica sobre a violência sexual masculina, a fim de aprimorar suas habilidades e conhecimentos nesta área. Além disso, eles devem estar conscientes de seus próprios preconceitos e estereótipos, buscando uma abordagem livre de julgamentos. Para as faculdades e instituições de ensino, recomenda-se a inclusão de disciplinas que abordem a violência sexual masculina de forma abrangente em seus currículos, a fim de preparar melhor os futuros psicólogos para lidar com essa realidade. Além disso, é fundamental fornecer material didático atualizado e recursos específicos sobre o tema.

No âmbito das políticas públicas, é necessário ampliar a conscientização sobre a violência sexual masculina e destinar recursos adequados para apoiar as vítimas. Isto inclui a criação de programas de prevenção, campanhas de sensibilização e o estabelecimento de serviços especializados para atender às necessidades específicas dos homens.

No entanto, é importante reconhecer as limitações deste estudo. Uma limitação é a natureza restrita das entrevistas com psicólogos, que podem não representar todas as perspectivas e experiências existentes. Além disso, a pesquisa não abordou a perspectiva das vítimas masculinas diretamente, o que poderia fornecer insights adicionais. Estudos futuros podem ser conduzidos para explorar mais a fundo as experiências e percepções das vítimas masculinas de violência sexual, a fim de obter uma compreensão mais abrangente do fenômeno. Além disso, pesquisas longitudinais podem ser realizadas para avaliar a eficácia de diferentes abordagens terapêuticas e identificar melhores práticas no apoio a essa população.

 

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