ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Transtorno de acumulação e perspectivas observadas no processo de envelhecer

Hoarding disorder and perspectives observed in the aging process

Trastorno de acaparamiento y perspectivas observadas en el proceso de envejecimiento

Fernanda Souza de Lima1; Jeniffer Ferreira-Costa2; Dante Ogassavara3; Thais da Silva-Ferreira4; José Maria Montiel5

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v15n28.0010

1. Psicóloga. Mestranda do PPG Ciências do Envelhecimento - Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: ferlima.mestrado@gmail.com
2. Psicóloga. Mestranda do PPG Ciências do Envelhecimento - Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: cjf.jeniffer@gmail.com
3. Psicólogo. Mestre pelo PPG Ciências do Envelhecimento - Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: ogassavara.d@gmail.com
4. Psicóloga. Mestranda do PPG Ciências do Envelhecimento - Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: thais.sil.fe@hotmail.com
5. Psicólogo. Mestre e Doutor em Psicologia. Docente do PPG Ciências do Envelhecimento - Universidade São Judas Tadeu / Instituto Ânima, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: montieljm@hotmail.com

Resumo

O envelhecimento populacional trará mudanças nas necessidades de cuidado da população idosa. A partir dessas prerrogativas, este estudo objetivou discutir as características do transtorno de acumulação no contexto do envelhecimento humano, destacando os fatores relacionados ao desenvolvimento dessas manifestações e o próprio quadro psicopatológico. Para isso, foi realizada uma pesquisa de revisão narrativa da literatura, com natureza qualitativa, descritiva e transversal. Discutiu-se que o transtorno de acumulação comumente é identificado em fases avançadas, pois o transtorno possui traços que levam ao isolamento social, apontando para a falta de rede de apoio à pessoa idosa e as implicações relacionadas à realidade desses sujeitos. Destacam-se a perda do autocuidado e a falta de ambiente seguro para a pessoa idosa acumuladora.

Palavras-chave: Envelhecimento. Transtorno psiquiátrico. Transtorno de acumulação.


Abstract

Population aging will bring changes in the care needs of the elderly population. From these premises, this study aimed to discuss the characteristics of hoarding disorder in the context of human aging, highlighting the factors related to the development of these manifestations and the psychopathological framework itself. For this purpose, a qualitative, descriptive and cross-sectional literature review research was conducted. It was discussed that hoarding disorder is commonly identified in advanced stages, as the disorder exhibits traits that lead to social isolation, pointing to the lack of a support network for the elderly and the implications related to the reality of these individuals. The loss of self-care and the lack of a secure environment for the elderly hoarder are emphasized.

Keywords: Aging. Psychiatric disorder. Hoarding Disorder.


Resumen

El envejecimiento de la población traerá cambios en las necesidades de cuidado de la población anciana. A partir de estas premisas, este estudio tuvo como objetivo discutir las características del trastorno de acumulación en el contexto del envejecimiento humano, resaltando los factores relacionados con el desarrollo de estas manifestaciones y el propio cuadro psicopatológico. Para ello, se llevó a cabo una investigación de revisión narrativa de la literatura, de naturaleza cualitativa, descriptiva y transversal. Se discutió que el trastorno de acumulación se identifica comúnmente en etapas avanzadas, ya que presenta rasgos que conducen al aislamiento social, señalando la falta de una red de apoyo para las personas mayores y las implicaciones relacionadas con la realidad de estos sujetos. Se destaca la pérdida de autocuidado y la falta de un entorno seguro para la persona mayor acumuladora.

Palabras clave: Envejecimiento. Desorden psiquiátrico. Trastorno de Acumulación.

 

INTRODUÇÃO

O processo de desenvolvimento humano e envelhecimento envolvem questões existenciais relacionadas à interação estabelecida pelos indivíduos com o tempo, o contexto social e sua história de vida, tanto coletiva quanto individual. Esses processos são marcados por características e fatores que exercem influência sobre a configuração da velhice, acarretando mudanças em ritmos variados, juntamente com o risco de aparecimento e desenvolvimento de doenças associadas à faixa etária. O envelhecimento abrange múltiplas dimensões da vida, destacando-se três fatores principais: biológicos, psicológicos e sociais (Ferreira-Costa et al., 2023).

No decorrer do envelhecimento, é possível contextualizar e interpretar situações que se entrelaçam com o cotidiano e as perspectivas de vida do indivíduo em suas diferentes culturas e formas de experienciar a vida (Ogassavara et al., 2022). Entre as diversas situações, a aquisição e posse de objetos podem ser compreendidas como um fenômeno de integração do novo elemento como parte integrante do indivíduo. Entre a adolescência e a idade adulta, observa-se o uso de objetos como meio de apoio do self, transformando-se em fonte de conforto e auxílio à reflexão, sendo conectados com os relacionamentos interpessoais como reflexos e dando lugar às lembranças, tornando-se repletos de significado (Maia et al., 2021).

Diante da capacidade de atribuir significado e associar lembranças a objetos, observa-se que, atualmente, as intercorrências da acumulação compulsiva, ou acumulação patológica, vêm sendo observadas de forma recorrente na população idosa (Araújo e Santos, 2015). Pessoas idosas com o Transtorno de Acumulação (TA) tendem a apresentar comprometimento na realização das atividades de vida diária, com prognóstico negativo sem tratamento e maior taxa de mortalidade dentro do período de cinco anos após o diagnóstico. Dessa forma, pode-se inferir que os diagnósticos, de uma forma geral, ocorrem tardiamente, levando a casos que chegam ao sistema de saúde pública acompanhados por outras comorbidades (Maia et al., 2021), o que acarreta diferentes gastos e comprometimentos, especialmente para as pessoas afetadas por esse transtorno.

A acumulação compulsiva é caracterizada como um transtorno emocional com grande repercussão comportamental e cognitiva, sendo intimamente relacionada à presença de comorbidades, como os transtornos de humor. Essa condição se caracteriza pelo recolhimento excessivo e pela capacidade de guardar coisas, geralmente sem utilidade, causando prejuízos para a pessoa que sofre da doença e seus familiares, vizinhos e amigos, podendo gerar danos emocionais, sociais, financeiros, físicos e até mesmo legais (American Psychiatric Association [APA], 2014).

Os indivíduos com comportamentos de acumulação tendem a se isolar, pois não se sentem confortáveis com a visita de outras pessoas em sua residência. Esses indivíduos tendem a estar desempregados, às vezes acima do peso e têm uma baixa qualidade de vida percebida, sofrendo com o isolamento social, entre outros problemas decorrentes dos comportamentos de acumulação. Especificamente, a pessoa idosa com TA pode ser diagnosticada pela observação do isolamento social, da diminuição da mobilidade e dos prejuízos nas atividades da vida diária, como tomar banho, dormir, comer e limpar. Além disso, a higiene de suas residências costuma ser precária pelo depósito e acúmulo de lixo, com entulhos e odores, objetos espalhados e desordenados e até mesmo o acúmulo de animais (Araújo e Santos, 2015).

Dada a magnitude dos impactos do TA sobre o bem-estar individual e coletivo, destaca-se a importância de adquirir maior conhecimento sobre esse quadro, considerando a necessidade de ações intervencionistas e remediadoras relacionadas a ele. Nesse sentido, partiu-se do seguinte questionamento: "quais elementos são relevantes no estabelecimento de quadros de acumulação?". Assim, o objetivo é discutir as características do Transtorno de Acumulação no contexto do envelhecimento humano, destacando os fatores relacionados ao desenvolvimento dessas manifestações e o próprio quadro psicopatológico.

 

1 MÉTODO

Trata-se de um delineamento de pesquisa transversal, descritivo e qualitativo em sua natureza (Gil, 2002). No que se refere aos procedimentos técnicos empregados, o estudo é classificado como uma revisão de literatura narrativa. Devido à sua natureza narrativa, pode-se afirmar que foram realizadas buscas não sistematizadas na literatura, permitindo a discussão e exposição de informações de forma concisa, sendo especialmente úteis para indivíduos em atuação prática (Bae, 2014).

Foram considerados artigos científicos disponíveis em bases de dados das plataformas Bvsalud, Lilacs, Vetindex, Scielo, entre outras revistas específicas ao tema. Foram utilizados os descritores "transtorno de acumulação", "envelhecimento" e "impactos da acumulação". Os trabalhos foram selecionados e avaliados, focalizando a identificação, aspectos clínicos, epidemiológicos e possíveis tratamentos relacionados ao TA. Seguindo os pressupostos do método de revisão narrativa da literatura, a seleção foi realizada de maneira intencional entre os materiais que contribuiriam para o debate e construção da reflexão acerca da temática (Ogassavara et al., 2023), a saber, foram utilizadas 20 materiais como referencial na construção da presente revisão.

 

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

É pertinente iniciar a análise considerando a classificação do TA na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-V (APA, 2014). O TA é categorizado na seção dos transtornos relacionados ao Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), uma escolha fundamentada na manifestação de comportamentos compulsivos e pensamentos obsessivos presentes no transtorno. O TOC, por sua vez, vincula obsessões a pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes, enquanto a compulsão refere-se a comportamentos repetitivos ou encobertos que uma pessoa se sente compelida a realizar em resposta a uma obsessão. No TA, essas características são evidenciadas, por exemplo, pela compulsão em acumular objetos e pelo sofrimento associado à dificuldade em descartá-los, manifestando-se de forma compulsiva e obsessiva (Gargiulo et al., 2017).

O DSM-V também expõe importantes especificidades dentro do transtorno, o que é crucial ao considerar diferentes contextos e as possíveis ferramentas disponíveis para o sujeito. O manual apresenta uma classificação baseada na capacidade de insight (diz respeito à capacidade de compreender e reconhecer determinada situação, problema ou condição) do próprio sujeito em relação à sua condição. Essa classificação varia desde um insight bom ou razoável, quando o sujeito reconhece suas crenças e comportamentos relacionados à acumulação e os identifica como problemáticos, até um insight pobre, no qual o sujeito reconhece suas crenças e comportamentos, mas não os identifica como problemáticos. Por fim, há o insight ausente/crenças delirantes, referindo-se ao caso em que o sujeito acredita que sua condição não é problemática (APA, 2014).

O TA é caracterizado por uma dificuldade persistente em descartar objetos, não sendo o valor real do objeto levado em consideração para mantê-lo. Em vez disso, o acúmulo é motivado pela percepção obsessiva da necessidade de conservar tais objetos e pelo sofrimento atribuído ao descarte. O acúmulo manifesta-se em aspectos como a excessividade na aquisição de objetos, envolvendo diversas vias, como roubo, compras e aglomeração de itens não necessários, para os quais ambientalmente não há lugar (APA, 2014). Assim, há impacto no ambiente, causando sofrimento e prejuízos significativos ao funcionamento individual no meio social, incluindo a incapacidade de manter um ambiente satisfatório para si e para os outros (Araújo e Santos, 2015).

Por não ser um transtorno amplamente conhecido, o diagnóstico pode ser equivocado e os sintomas podem estar presentes desde a infância ou adolescência, intensificando-se na fase adulta (Cardoso e Bastos, 2019). Há o desenvolvimento e a progressão de maneira não consciente que gera compulsão de comprar, recolher, amontoar e acumular, estando além da capacidade de controle do agente. Existe uma linha tênue que diferencia o estilo do acumulador compulsivo do estilo do colecionador. O colecionador mantém um contato sólido com a realidade, demonstrando habilidade para organizar os objetos e avaliar o espaço e os valores associados ao seu acervo. Esta capacidade contrasta com a situação dos acumuladores, que perderam o controle sobre a aquisição e disposição dos objetos (Lima, 2011). Ademais, o Transtorno de Acúmulo (TA) resulta em um impacto ambiental notável devido à obstrução de áreas causada pelo excessivo acúmulo de objetos, uma característica não presente nos colecionadores (APA, 2014).

É válido destacar que o comportamento acumulador pode ser considerado uma estratégia de adaptação para lidar com condições de privação, com o fim de garantir a própria sobrevivência (Schmidt, Della Méa e Wagner, 2014). Para diferenciar subtipos de acumulação, aponta-se que o acumulador compulsivo possui um sintoma que psicologicamente não consegue controlar, resultando em uma patologia que causa danos a si e aos arredores. Já o colecionador possui um traço em seu caráter onde procura extrair prazer real em seus achados, a fim de aumentar e/ou valorizar algo (Santos, 2013).

Complementando, é relevante mencionar que a literatura científica apresenta debates sobre a nosologia do Transtorno de Acumulação (TA), sugerindo que tal transtorno possui características distintas de psicopatologia, incluindo características neurobiológicas e respostas de tratamento específicas. O estudo de Fontenelle e Grant (2014) corrobora essa visão. Além disso, os autores sugerem a consideração dos prejuízos de insights na significância desse debate sobre a questão específica do TA.

Faz-se relevante citar que fatores genéticos podem ter uma forte influência no TA. De acordo com Iervolino et al. (2009), o TA é 50% mais comum em indivíduos com histórico familiar de ancestrais de primeiro grau. Gargiulo et al. (2017) indicam que a acumulação pode ser considerada um resultado do déficit no processamento de informações, dificuldades em formar ligações emocionais, evitação do comportamento social e crenças errôneas sobre a natureza das posses. Está associada à ativação excessiva no córtex cingulado anterior, uma das regiões que estimulam a tomada de decisão, principalmente julgamentos que envolvem informações conflituosas e falta de clareza. Estudos neuropsicológicos demonstram déficits na categorização, trabalho de memória, atenção e erro no processamento, além de possíveis problemas de aprendizado do indivíduo. Outra área importante do encéfalo possivelmente ligada ao TA está na ínsula, região que monitora o estado emocional e físico. Nessa região, envolvem-se sensações como nojo, vergonha e outras fontes de emoções negativas e, com essas junções, o indivíduo se torna capacitado para decidir sobre a importância dos objetos que o cercam (Araújo e Santos, 2015).

Indica-se a possibilidade de o comportamento acumulador começar no período da infância e adolescência, com a progressão ao longo da vida adulta. Desta maneira, é possível observar os sintomas de forma mais nítida durante a terceira idade. Cabe ressaltar que as manifestações comportamentais de acumulação podem ser confundidas com outro transtorno mental ou condição médica. Ambas alternativas implicam interferências significativas no funcionamento global do indivíduo, gerando sofrimento (Schmidt, Della Méa e Wagner, 2014). A acumulação compulsiva é caracterizada por uma doença crônica e progressiva, que começa cedo na vida e se agrava com o processo de envelhecimento do indivíduo, tornando-se mais severa a cada década de vida (Almeida, 2014). Há relação com a aquisição ou coleta de bens ou objetos descartados como lixo, onde o indivíduo é incapaz de descartá-los, mesmo quando se tornam inúteis, perigosos ou insalubres. A desorganização aumenta os riscos de incêndios, soterramentos pelos objetos acumulados, comprometendo a segurança, especialmente no caso de idosos, com riscos adicionais de quedas e higiene precária (Maia et al., 2021).

Embora traços de personalidades cumulativas e comuns a esse transtorno existam de forma precoce, os sintomas também podem ser desencadeados em momentos oportunos ao longo da vida do indivíduo, ou seja, a morte de um familiar, dificuldades econômicas, conflitos pessoais ou profissionais, experiência traumática, entre outros. Assim, podem ser considerados durante a avaliação psicológica para diagnóstico (Araújo e Santos, 2015). Aponta-se a hipótese de que os idosos são mais propensos a acumular e a ter um agravamento em seus quadros de saúde, sinalizando um maior comprometimento e negligência da rede de apoio do indivíduo. A acumulação na velhice é perigosa devido ao aumento do risco de quedas, incêndios, má nutrição, má gestão da saúde e uso de medicamentos. Muitas vezes, os tratamentos cognitivos padrões não se demonstram efetivos, pois quando a patologia é descoberta, está em um grau grave na condição psiquiátrica, comprometendo as atividades da vida diária e elevando o número de complicações médicas (Gargiulo et al., 2017).

O TA pode manifestar-se de diferentes formas e uma característica que sustenta o diagnóstico é a acumulação, por exemplo, de animais, frequentemente acompanhada pela acumulação de objetos inanimados. Observa-se que existem diferenças nos prejuízos enfrentados por indivíduos com TA que se limitam à acumulação de objetos inanimados em comparação com aqueles que acumulam animais. Essas diferenças sugerem um prejuízo de insight mais pronunciado naqueles que acumulam animais (APA, 2014).

2.1 Acumuladores compulsivos

Os acumuladores compulsivos também podem ser conhecidos como portadores da Síndrome de Diógenes (REYES-ORTIZ, 2001). Os portadores deste quadro tendem a acumular objetos e a se isolar devido à desconfiança e à rejeição ao mundo externo. São considerados acumuladores compulsivos os indivíduos que possuem comportamentos patológicos de adquirir objetos desnecessários de forma repetitiva. Isso caracteriza-se como um tipo de investimento, uma tentativa de assegurar o valor emocional intrínseco ao objeto e apresentando medo de perder ou se desfazer daqueles que possam vir a ser importantes no futuro ou até mesmo devido ao seu vínculo emocional (Schmidt, Della Méa e Wagner, 2014).

A incidência anual do TA é de cinco casos para cada 10.000 habitantes com mais de 60 anos, fase em que é possível observar maiores incidências de declínio cognitivo, transtornos mentais orgânicos e demências como parte do próprio processo de envelhecimento. Essas ocorrências costumam ser evidenciadas entre indivíduos idosos de todas as classes sociais e são igualmente prevalentes entre homens e mulheres (Stumpf e Rocha, 2010). Os acumuladores compulsivos apresentam má organização do espaço físico, o que inviabiliza a convivência no ambiente. Eles recolhem e acumulam excessivamente bens e objetos que a maioria das pessoas descarta, como sucatas ou lixo, embalagens e jornais velhos. Sentem-se angustiados e indecisos nas tentativas e solicitações para descartar os objetos acumulados e tendem a negar que o acúmulo compulsivo seja exagerado, pois sentem vergonha e constrangimento desse hábito, mesmo que não consigam controlar seus impulsos (Lima, 2011).

2.1.1 Acumuladores de animais

Os acumuladores de animais podem ser caracterizados por um transtorno presente em todas as sociedades, afetando de dois a seis por cento da população mundial (APA, 2014). Embora haja uma taxa significativa de ocorrência, verifica-se uma escassez de trabalhos científicos referentes a essa temática (Cardoso e Bastos, 2019). Ressalta-se a importância de diferenciar o cuidador de animais de um indivíduo que possui o TA, pois a diferença está na quantidade, finalidade e qualidade de vida dos animais, considerando que esses acumuladores possuem uma psicopatologia que se manifesta de diferentes maneiras. Existem indivíduos que acumulam uma maior quantidade de animais, bem como outros que podem acumular menores quantidades, tendo-os como parte de suas vidas e compartilhando com eles os locais onde vivem. No entanto, em ambos os casos, é possível observar o comprometimento do bem-estar geral, da saúde dos animais e do ambiente, tornando a condição insalubre tanto para os agentes quanto para os animais (Henriques et al., 2019).

O TA de animais é caracterizado por um indivíduo que mantém diversos animais em casa sob péssimas condições de higiene e limpeza. As condições de vida oferecidas aos animais e o ambiente em que vivem são considerados maus-tratos, pois muitas vezes os animais são encontrados doentes, chegando até mesmo a óbito devido à situação deficitária em que são mantidos. A condição de acúmulo e a quantidade de animais em ambiente restrito promovem e disseminam vetores de doenças entre eles, e até mesmo zoonoses transmitidas ao próprio acumulador, vizinhos próximos, familiares e amigos que frequentam o local (Cardoso e Bastos, 2019).

Geralmente, os acumuladores de animais são impulsionados pela paixão que nutrem pelos animais e pela compaixão diante de seu estado de abandono ou maus-tratos. Nesses casos, o acumulador não possui a capacidade de entender e reconhecer a crueldade e o sofrimento impostos aos animais que são confinados. Isso se deve a uma desordem da saúde mental, que muitas vezes os isenta do senso crítico em relação à anormalidade patológica de sua atitude (Rodrigues, 2019).

2.1.2 Acumuladores colecionadores

Os acumuladores colecionadores podem ser considerados dentro da classificação nosológica mais saudável na patologia, pois esses indivíduos possuem maior organização no ambiente em que vivem (Schmidt, Della Méa e Wagner, 2014). Eles são motivados a buscar objetos que possam completar sua coleção de itens específicos que consideram importantes para si (APA, 2014), frequentemente ordenando, higienizando e rotulando seus itens. Ao contrário do TA severo, o comportamento de colecionar tende a ser amenizado ao longo da vida (Stumpf, Hara e Rocha, 2018).

 

3 INTERVENÇÕES VOLTADAS AO COMPORTAMENTO ACUMULADOR

Em virtude da gravidade do comportamento, o indivíduo que acumula encontra-se, frequentemente, envolvido em processos judiciais voltados à reversão do quadro instalado, constituindo-se, assim, em uma fonte de sofrimento e, muitas vezes, em uma incapacidade de lidar com aquela situação (Schmidt, Della Méa e Wagner, 2014). A procura por auxílio de indivíduos com comportamentos acumuladores é rara, somente recorrendo a serviços de saúde quando encaminhados por outros indivíduos ou instituições estatais (Stumpf, Hara e Rocha, 2018). O diagnóstico é clínico e pode ser realizado com exames complementares com a finalidade de descartar patologias orgânicas, cabendo atuações interdisciplinares focadas na integralidade do indivíduo idoso. Ademais, nota-se que há profissionais de saúde que pouco conhecem acerca dos possíveis sintomas de TA, sobretudo em pessoas idosas, o que pode ocasionar a realização de uma avaliação não adequada e, consequentemente, um agravo dessa psicopatologia (Araújo e Santos, 2015).

Reflete-se sobre a possibilidade de que a relutância em buscar auxílio esteja ligada a um modelo cognitivo permeado por pensamentos indecisos, perfeccionistas e propensos à evitação, procrastinação, deficiência no planejamento e na organização, aliados à distraibilidade (APA, 2014). Adicionalmente, destaca-se a conexão estreita entre a capacidade de insight e a habilidade de identificar o problema para, consequentemente, buscar ajuda. Logo, quando essa capacidade é comprometida, observa-se uma redução na propensão a buscar suporte, como indicado por Oliveira et al. (2019). Vale ressaltar ainda que a presença de sintomas de acumulação está associada a uma menor aderência aos tratamentos medicamentosos e psicoterapêuticos.

Quadros depressivos são evidenciados como fatores desencadeantes que influenciam a gravidade do comportamento de acumulação. O tratamento de pessoas com esse transtorno pode ser um desafio, pois existe certa dificuldade em identificar quais as pessoas que o possuem. Por vezes, a ajuda de familiares ou amigos na organização dos objetos pode mascarar a gravidade e a observação da doença, minimizando assim seu agravo (Gargiulo et al., 2017). Indivíduos acumuladores podem sentir vergonha de procurar ajuda; dessa forma, o objetivo do tratamento passa a ser um caminho de amenização e melhora na apresentação sintomática, sem ter que retirar o paciente do meio em que vive, exceto quando se encontra em situações de extremo risco ou incapacidade, trabalhando, assim, com uma maior redução de danos e mudança de comportamento que pode perdurar quase toda a vida (Araújo e Santos, 2015).

O estudo realizado por Nakao e Kanba (2019) expõe que, nos serviços de Saúde Mental, a intervenção para tal transtorno não é padronizada, a falta de padronização deriva de tal transtorno ter sido classificado de maneira relativamente recente. Os autores indicam que quando comparado com intervenções tradicionais a outros subtipos da classificação de TOC, há menor resposta a tratamento em pacientes com TA.

É proposto ao acumulador a participação em psicoterapia em grupo e individual focada na identificação das raízes de ansiedade e na reorganização de suas posses, decidindo assim o que deve ser descartado, desenvolvendo habilidades nas tomadas de decisão e relaxamento, além de receber visitas periódicas de um especialista em suas residências (Schmidt, Della Méa e Wagner, 2014). A abordagem de psicoterapia mais utilizada e com resultados promissores no tratamento é a Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), que consiste em um método focado e de caráter breve de sessões estruturadas, com o objetivo de compreender a reestruturação de pensamentos e crenças, obtendo possíveis mudanças cognitivas e comportamentais (Araújo e Santos, 2015).

O estudo de Oliveira et al. (2019) e Nakao e Kanba (2019) corroboram com a evidência de uma maior eficácia do tratamento utilizando a TCC, destacando a complementaridade dessa abordagem ao integrar a terapia farmacológica. No entanto, Oliveira et al. (2019) salientam que essa eficácia nem sempre alcança significância estatística, principalmente devido aos desafios relacionados aos insights comprometidos que, por sua vez, prejudicam a aderência aos tratamentos. Isso ressalta a importância de intervenções iniciais voltadas para estimular a motivação dos pacientes, reconhecendo a complexidade da relação entre a efetividade do tratamento e as barreiras individuais à adesão. Nakao e Kanba (2019) complementam necessário considerar aspectos psicossociais, como a relação familiar, possíveis controles ambientais e as condições de comorbidade na estruturação de intervenções.

Mathes et al. (2020) realizaram uma investigação sobre a teoria do apego como base para a compreensão do TA. Os autores identificaram que as cognições desadaptativas relacionadas a apegos disfuncionais podem ser fundamentalmente o que conjuntura e fortifica comportamentos relacionados à preservação de objetos sem finalidade. Com isso, denota-se a potencialidade de intervenções interpessoais combinadas com práticas da TCC. Quanto às estratégias cognitivo-comportamentais, os autores indicaram o foco na flexibilização sobre a importância dos bens, do apego emocional e o aumento dos insights.

A identificação do transtorno acumulador pela atenção básica pode oportunizar a abordagem e o seguimento de tratamento dos casos pela rede de atenção de forma mais precoce, reduzindo o agravamento dos riscos (Henriques et al., 2019). As ações devem ser consideradas dentro de diversas estruturas públicas, como forma de mitigar o possível sentimento de perda e os riscos para o agravamento da saúde física ou emocional dos acumuladores que sofrem intervenção e fomentando o fortalecimento da rede de apoio do paciente que apresenta o diagnóstico de TA, direcionando a construção de projetos de reinserção social (Gargiulo et al., 2017).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se trata de transtornos psiquiátricos no contexto do envelhecimento humano, destaca-se a demanda por cuidado especializado para atender às necessidades específicas do público idoso. É ressaltada a importância das fontes de suporte social como elementos com potencial para amenizar os impactos das condições adversas que afetam as pessoas idosas e seus agravos. Neste contexto, é oportuno reafirmar que a presente revisão teve como objetivo discutir as características do TA no processo de envelhecimento, com ênfase nos fatores relacionados ao desenvolvimento desses quadros.

Foi possível identificar um perfil sociodemográfico comum entre os indivíduos acumuladores, sendo predominantemente sujeitos não casados, de idade avançada, com declínios no funcionamento psicológico e propensos ao isolamento social. Foi destacado que as pessoas com TA são frequentemente identificadas tardiamente, o que pode ser parcialmente explicado pelo isolamento que as leva a se afastar de fontes de suporte. Vale ressaltar a diferença entre o colecionador – que se concentra na acumulação de um único tipo de objeto – e o acumulador compulsivo – que não se preocupa propriamente em agregar um único tipo de objeto, perdendo o senso de realidade do que está sendo acumulado ou agrupado.

Argumentos aparentemente inteligentes e cautelosos são comumente observados e não estão necessariamente errados. Argumenta-se que a acumulação pode ocorrer devido à possibilidade de uso futuro ou para evitar o desperdício de materiais, por exemplo. No entanto, essas afirmações podem indicar fatores que contribuem para o TA. Em relação aos aspectos emocionais, no início das manifestações de acumulação, o medo e a apreensão de fazer a escolha entre guardar e talvez um dia necessitar podem reforçar a manutenção do comportamento. Além da inadequação do comportamento, aspectos emocionais tendem a estar intrinsecamente ligados ao próprio ato. Isso destaca a importância de abordagens terapêuticas que considerem esse fator, especialmente modelos de atendimento interdisciplinares, que podem ser mais eficazes na solução e resolução dos diferentes aspectos da vida da pessoa, reduzindo a relação com o ato.

Em casos mais intensos, mesmo quando o indivíduo tenta evitar o comportamento de acumulação, pode ocorrer um sofrimento emocional que o leva a executar o ato e, quando não o faz, o sofrimento pode ser ainda maior do que o próprio ato. Mesmo sendo considerado um comportamento repetitivo e condicionado, há uma manifestação de uma necessidade de caráter existencial, pois o ato de acumulação faz parte da vivência cotidiana do indivíduo. Em termos de intervenções, tanto preventivas quanto remediativas, a restrição para evitar o ato não deve ser realizada abruptamente, mas sim gradualmente, para amenizar os sintomas de maneira mais adaptada.

Ao considerar as características dos quadros de acumulação, destaca-se que a perda do autocuidado, que envolve práticas de manutenção da saúde individual e coletiva, é um fenômeno que pode levar à acumulação não apenas desnecessária, mas também insalubre, caracterizando-a como uma forma de autonegligência. A partir dessa perspectiva, é válido refletir sobre o TA como um quadro marcado pelo desapego em relação à própria saúde, seja devido à desinformação ou a limitações objetivas.

É necessário desenvolver investigações voltadas aos comportamentos de acumulação, a fim de fornecer novos dados para o aprimoramento dos modelos teóricos existentes, fortalecendo os dispositivos de intervenção já disponíveis e aumentando a disseminação do conhecimento sobre os transtornos entre as equipes de saúde e a sociedade em geral.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – APA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V). Porto Alegre: Artmed, 2014.

ARAÚJO, E. N. P. e SANTOS, V. G. Transtorno de acumulação compulsiva de idosos: possibilidades de cuidados e questões de saúde pública. Revista Kairós-Gerontologia, v. 18, n. 4, p. 81–100, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.23925/2176-901X.2015v18i4p81-100. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

ALMEIDA, G. L. Disposofobia: a função existencial de acumular. Caderno de Ciências Biológicas e da Saúde, n. 4, 2014. Disponível em: https://docplayer.com.br/45210000-Disposofobia-a-funcao-existencial-de-acumular.html. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

BAE, J.-M. Narrative Reviews. Epidemiology and Health, e2014018, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.4178/epih/e2014018. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

CARDOSO, T. C. M. e BASTOS, P. A. S. Acumuladores de animais: instrumento de vistoria técnica e perfil de casos no município de Guarulhos, SP, Brasil. Revista Brasileira de Ciência Veterinária, v. 26, n. 3, p. 75–81, 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/rbcv/article/view/27645. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

FERREIRA-COSTA, J. et al. Promoção de qualidade de vida na pessoa idosa: representações e adjetivações subjetivas. PSI UNISC, v. 7, n. 2, p. 249–257, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.17058/psiunisc.v7i2.18324. Acesso em: 05 de setembro de 2023.

FONTENELLE, L. F. e GRANT, J. E. Hoarding Disorder: a New Diagnostic Category in ICD-11?. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 36, p. 28–39, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-4446-2013-1269. Acesso em: 20 de dezembro de 2023.

GARGIULO, M. S. et al. Identificação e cuidados no transtorno de acumulação. Rev. enferm. UFPE on-line, p. 5028-5036, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i12a15213p5028-5036-2017. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

HENRIQUES, L. F. et al. Acumuladores: uma revisão integrativa do potencial risco de disseminação de doenças transmitidas por vetores e outros animais nocivos à saúde. BIS. Boletim do Instituto de Saúde, v. 20, n. 2, p. 125–138, 2019.

IERVOLINO, A. C. et al. Prevalence and Heritability of Compulsive Hoarding: a Twin Study. American Journal of Psychiatry, v. 166, n. 10, p. 1156–1161, 2009.

LIMA, R. Acumuladores compulsivos – uma nova patologia psíquica. Revista Espaço Acadêmico, n. 126, 2011. Disponível em: http://portal.tempodeser.org.br/_media/comge/cdir/pga/la2017/artigo_-_acumuladores_compulsivos.pdf. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

OGASSAVARA, D. et al. Concepções e interlocuções das revisões de literatura narrativa: contribuições e aplicabilidade. Ensino & Pesquisa, v. 21, n. 3, p. 8-21, 2023.

OGASSAVARA, D. et al. Considerações sobre etnopsiquiatria: incitações pertinentes no envelhecimento e saúde mental. Diaphora, v. 11, n. 1, p. 60–65, 2022.

REYES-ORTIZ, C. A. Diogenes Syndrome: the Self-Neglect Elderly. Comprehensive Therapy, v. 27, n. 2, p. 117–121, 2001.

RODRIGUES, C. M. Acumuladores de animais na perspectiva da promoção e da vigilância em saúde. ABCS Health Sci., v. 44, n. 3, p. 195-202, 2019. DOI: https://dx.doi.org/10.7322/abcshs.v44i3.1394. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

NAKAO, T. e KANBA, S. Pathophysiology and Treatment of Hoarding Disorder. Psychiatry and Clinical Neurosciences, v. 73, n. 7, p. 370–375, 2019. DOI: https://doi.org/10.1111/pcn.1285. Acesso em: 20 de dezembro de 2023.

MAIA, M. M. et al. Transtorno da acumulação no distrito de saúde Lapa/Pinheiros, no município de São Paulo (SP) entre 2016 e 2019. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação-REASE, 2021. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/1798. Acesso em: 17 de agosto de 2023.

MATHES, B. M. et al. Attachment Theory and Hoarding Disorder: a Review and Theoretical Integration. Behaviour Research and Therapy, v. 125, p. 103549, 2020.

OLIVEIRA, C. et al. Hoarding Disorder: abordagem terapêutica com terapia cognitivo-comportamental. Psicologia, Saúde & Doenças, v. 19, n. 3, p. 682–692, 2019. DOI: https://doi.org/10.15309/18psd190317. Acesso em: 20 de dezembro de 2023.

SANTOS, G. A. O. A Angústia e a culpa no transtorno obsessivo-compulsivo: uma compreensão fenomenológico-existencial. Revista abordagem Gestalt, v. 19, n. 1, p. 85-91, 2013.

SCHMIDT, D. R., DELLA MÉA, C. P. e WAGNER, M. F. Transtorno da Acumulação: características clínicas e epidemiológicas. Revista CES Psicología, v. 7, n. 2, p. 27-43, 2014. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4235/423539424004.pdf. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

STUMPF, B. P., HARA, C. e ROCHA, F. L. Transtorno de acumulação: uma revisão. Geriatr., Gerontol. Aging (Online), v. 12, n. 1, p. 54-64, 2018.

STUMPF, B. P. e ROCHA, F. L. Síndrome de Diógenes. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/jbpsiq/a/RKHJxRjqN4s3pPfkHwJL5Nb/abstract/?lang=pt. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

Centro Universitário Presidente Antônio
Carlos Campus Barbacena-MG

E-mail: revistamental@unipac.br
Tel.: (32) 3339-4967 / 3339.4910

Indexadores