ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Recorte temporal dos desafios para implementação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Brasil: revisão sistemática

Temporal review of the challenges for the implementation of the Psychosocial Attention Network (RAPS) in Brazil: systematic review

Revisión temporal de desafíos para implementación de la Red de Atención Psicosocial (RAPS) en Brasil: revisión sistemática

Arlane Silva Carvalho ChavesI; Layane Mota de Souza de JesusII; Carlos Mendes RosaIII; Leandro Guimarães GarciaIV

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v14n26.0003

I. Doutoranda em Enfermagem Profissional pela Faculdade de Medicina de Botucatu - FMB/UNESP; Mestre em Ensino em Ciência e Saúde - UFT
II. Mestre. Afiliação Institucional: UFMA, Professor efetivo
III. Afiliação institucional: UFT - Universidade Federal do Tocantins. Cargo: Professor Adjunto
IV. Doutor. Afiliação institucional: UFT - Universidade Federal do Tocantins. Cargo: Professor Associado, nível 1, vinculado à coordenação do curso de Medicina da UFT

Resumo

A RAPS integra um dos eixos prioritários da Rede de Atenção à Saúde no Brasil. Objetiva-se apontar um panorama referente aos desafios para implementação da RAPS no Brasil. Realizou-se uma revisão sistemática da literatura por meio de buscas nas bases: Google Acadêmico, Scielo, BDENF, Portal da CAPES, Medline e Lilacs, utilizando-se a associação "Rede de Atenção Psicossocial" e "desafios". Os desafios foram: articulação da rede/efetivação do apoio matricial; recursos materiais e humanos; gestão; assistência tradicional/manicomial e outros. Conclui-se que é primordial que as práticas assistenciais em saúde mental sejam revistas, que profissionais e poder público busquem integrar suas ações e que familiares possam também compor e se reconhecerem como parte importante para o processo do cuidado.

Palavras-chave: Desafios; Implementação; Rede de Atenção Psicossocial.


Abstract

The Psychosocial Attention Network (RAPS) integrates one of the priority axes of the Health Care Network in Brazil. Aim to give an overview of the challenges for implementing RAPS in Brazil. A systematic review of the literature was carried out, by the searching at the bases: Google Academic, Scielo, BDENF, Portal of the CAPES, Medline and Lilacs, using the association "Psychosocial Care Network" and "challenges". The challenges were: articulation of the network/implementation of matrix support; material and human resources; management; traditional/asylum assistance and others. It was concluded that is essential that mental health care practices be reviewed, that professionals and public authorities seek to integrate their actions and that family members can also compose and recognize themselves as an important part of the care process.

Keywords: Challenges; Implementation; Psychosocial Attention Network.


Resumen

La RAPS integra uno de los ejes prioritarios de la Red de Atención a la Salud en Brasil. Apunta a señalar el panorama referente a los desafíos para implementación de la RAPS en Brasil. Se realizó una revisión sistemática de la literatura, buscando en las bases de datos: Google Académico, Scielo, BDENF, Portal da CAPES, Medline y Lilacs, utilizando la asociación ""Red de Atención Psicossocial"" y ""desafios"". Los desafíos eran: articulación de la red/efectividad del apoyo matricial; recursos materiales y humanos; gestión; asistencia tradicional/manicomial y otros. Se concluyó que es primordial que las prácticas asistencias en salud mental sean revisadas, que profesionales y poder público busquen integrar sus acciones y que familiares puedan también componer y reconocerse como parte importante para el proceso de cuidado.

Palabras clave: Desafíos; Implementación; Red de Atención Psicosocial.

 

INTRODUÇÃO

Os primeiros passos para a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) deram-se ainda na década de 1970, frente aos (des)cuidados em saúde mental, como movimento sanitário de trabalhadores em saúde mental, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas. O saber psiquiátrico vigente e o modelo hospitalocêntrico no cuidado às pessoas em sofrimento psíquico foram recebendo contestações coletivas e a lógica do cuidado em saúde mental, aos poucos, foi ganhando novos contornos (BEZERRA JR. e AMARANTE, 1992; AMARANTE, 2005; BRASIL, 2013).

A RPB propõe a busca pela superação do modelo asilar e hospitalocêntrico, bem como a garantia dos direitos de cidadania à pessoa em sofrimento psíquico, devolvendo a ela o poder de escolha e sua participação ativa no próprio tratamento, o reconhecimento da liberdade como terapêutica e promotora de saúde mental e a construção da cidadania (SALLES e BARROS, 2013; CRUZ et al., 2019).

Oliveira (2019) aponta três princípios importantes de partida para a RPB: a contestação do manicômio no campo dos direitos humanos como dispositivo de custódia; o ideal em realizar uma prática inclusiva da loucura pela sociedade e a intenção de propor dispositivos comunitários em substituição ao manicômio. A RPB tem como amparo legal a Lei nº 10.216/02 (aprovada após mais de dez anos de tramitação no Congresso Nacional), que afirma os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental; o Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que estabelece que a atenção psicossocial passe a integrar o conjunto das redes indispensáveis nas Regiões de Saúde; a Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011 que, finalmente, institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (BRASIL, 2011; BRASIL, 2013) e a Nota Técnica do Ministério da Saúde nº 11/2019, que amplia e atualiza os componentes da RAPS e estabelece sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental (ampliando os componentes da RAPS) e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas (BRASIL, 2019).

O Ministério da Saúde (BRASIL, 2018) direciona a atuação da RAPS por meio de diretrizes específicas que visam: respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia, a liberdade e o exercício da cidadania; promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde, garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar; ênfase em serviços de base territorial e comunitária, diversificando as estratégias de cuidado, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares; organização dos serviços em RAS regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado e desenvolvimento da lógica do cuidado centrado nas necessidades das pessoas com transtornos mentais, incluídos os decorrentes do uso de substâncias psicoativas.

Além das diretrizes, quatro eixos estratégicos para implementação da Rede complementam a assistência: 1) ampliação de acesso à rede de atenção integral à saúde mental; 2) qualificação da rede de atenção integral à saúde mental; 3) ações intersetoriais para reinserção social e reabilitação e 4) ações de prevenção e redução de danos (BRASIL, 2018).

Atualmente a RAPS é composta: pelos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), em suas diferentes modalidades; Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); Unidades de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil); enfermarias especializadas em hospital geral; hospitais psiquiátricos; hospitais-dia; atenção básica; urgência e emergência; comunidades terapêuticas; ambulatórios multiprofissionais de Saúde Mental - unidades ambulatoriais especializadas (BRASIL, 2019).

Sua atuação vai desde o acolhimento com classificação de risco, a cuidados em situações de urgência e emergência, integrando todos os seguimentos da RAPS. Acresce-se que em demanda espontânea ou referenciada, cada componente da rede deve realizar atendimento assistencial dentro de sua capacidade, favorecendo e valorizando o fluxo da rede e garantindo a segurança e estabilidade do quadro clínico do paciente (COSTA et al., 2012).

A rede, criada a partir da desinstitucionalização e desospitalização dos chamados manicômios, vem para substituir o modelo manicomial de assistência e, para isso, seus dispositivos e serviços, que ampliam e articulam a assistência em saúde mental, são dispostos em níveis de complexidade crescente, de modo a garantir a integralidade do cuidado frente às demandas dos seus usuários e inseri-los nos espaços sociais (SALLES e BARROS, 2013). Por isso, a construção de uma rede comunitária de cuidados é fundamental para a consolidação da Reforma Psiquiátrica (ROSA e VILHENA, 2012). A articulação em rede dos variados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico é crucial para a constituição de um conjunto vivo e concreto de referências capazes de acolher integralmente a pessoa em sofrimento psíquico (BRASIL, 2005).

É válido ressaltar que um cuidado em saúde mental não pode se restringir a uma ação protocolar, só faz sentido se incluir no processo as diferentes redes (familiar, territorial, social e afetiva) a ele pertinentes. O paciente em sofrimento psíquico, por sua fragilidade no laço social e pelo estigma que a doença psiquiátrica carrega, vivencia, de maneira acentuada, os rebatimentos de uma falta de articulação entre as distintas esferas de cuidado. Por isso, a estruturação e organização dessa rede deve favorecer o atendimento, preferencialmente em nível comunitário e junto à família, primando-se pela melhoria da qualidade de vida que tem implícita a promoção da saúde mental, visto que não há possibilidade de (re)inserção social do paciente se a assistência não abraça também os diferentes componentes ligados a ele, de modo que colaborem no processo terapêutico (BANDEIRA, FREITAS e CARVALHO FILHO, 2007; KEMPER et al., 2015) e se efetive o propósito da RAPS por meio de ações integrais interligadas e subsidiadas por financiamento coerente, que garanta qualificação profissional continuada e subsídios necessários para a oferta dos serviços.

Apesar do significativo aprofundamento do processo de expansão e regionalização da rede de serviços, ao longo de mais de 20 anos de aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica, ainda existem "vazios assistenciais" em diversos pontos de atenção, o que gera fragilidade na cobertura da rede de serviços (MACEDO et al., 2017). Os serviços ainda enfrentam dificuldades para o seu desenvolvimento, sobretudo no que tange o desafio de romper com o modelo hospitalocêntrico puramente curativo e práticas manicomiais, atrelado a uma deficiente cobertura desses usuários na atenção básica e significativa centralização dos serviços e cronificação dos usuários no CAPS ("capsização dos serviços") (AZEVEDO e FERREIRA FILHA, 2012; VIEIRA e MARCOLAN, 2016).

Kemper et al. (2015) destacam que, apesar da integralidade ser o princípio básico da assistência, o foco na doença, e não no sujeito como um todo, ainda é uma prática comum. E por isso, promover saúde e prevenir doenças buscando articulação das diversas redes para oferecer um cuidado ampliado, muitas vezes, não encontra eco na realidade dos serviços de saúde. Desse modo, nem sempre essa rede articulada consegue efetivar suas ações de forma integrada, pois desvelam-se desafios para gerir, manter e dirigir tal rede de atenção, tais como a garantia do acesso e da qualidade dos serviços, de forma igualitária e equitativa; financiamento para subsidiar os serviços e ações necessárias; treinamento e capacitação dos profissionais insuficientes para o cuidado aos pacientes em sofrimento psíquico; acolhimento aos familiares; desmistificação dos serviços de base hospitalar, com longas internações desnecessárias; entre outros.

Para esse estudo seguiu-se a questão de pesquisa: Quais os principais desafios enfrentados para a implementação da RAPS no Brasil? Realizou-se uma revisão sistemática da literatura, objetivando apontar um panorama referente aos desafios para implementação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Brasil.

 

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de revisão sistemática que é descrita como uma forma de estudo secundária, construída a partir de estudos individuais (chamados estudos primários), que contribuem para essa revisão. Ela corresponde à identificação, avaliação e interpretação de todas as pesquisas relevantes para uma pergunta de pesquisa particular, área de estudo ou fenômeno de interesse (PORTILLO-RODRÍGUEZ et al., 2012).

As buscas aconteceram no período de fevereiro a abril de 2017, nas bases Google Acadêmico (1210 artigos), Scielo - Scientific eletronic Library online (24 artigos), BDENF (seis artigos), Portal da CAPES (75 artigos), Medline (seis artigos) e Lilacs (31 artigos), utilizando-se a associação "Rede de Atenção Psicossocial" e "desafios". Obteve-se um retorno de 1352 artigos.

Foram incluídos artigos completos em português, publicados em periódicos nos anos de 2015 a 2017, disponíveis para download, cujas pesquisas haviam sido realizados em cenários brasileiros e nos quais os resultados apontassem os desafios para implementação da RAPS. Foram excluídos os artigos de revisão e artigos duplicados, sendo escolhido o mais completo.

Considerando os critérios estabelecidos, inicialmente eram lidos os títulos e resumos (os quais foram organizados em uma planilha). Nessa etapa foram excluídos 29 artigos duplicados e 1263 artigos por não trazer informações relacionadas à questão de pesquisa. Elegeram-se 60 artigos para download e leitura integral para que se confirmasse a elegibilidade. Após essa etapa, incluiu-se nesse estudo 18 artigos completos, dos quais foram identificados e extraídos os desafios para implementação da RAPS como política efetiva em Saúde Mental.

Para melhor discussão dos resultados, estes foram expressos de forma sistemática em tabela (Tabela 1) e categorizados a partir das inferências textuais.

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para melhor discussão e visualização dos desafios identificados, estes foram agrupados em cinco categorias:

Categoria 1 - Articulação da rede/efetivação do matriciamento (presente em 12 dos 18 artigos). Nessa categoria foram expressos desafios vivenciados pelas equipes de saúde em integrar ações que incorporem os profissionais, principalmente das Estratégias de Saúde da Família e os Centros de Atenção Psicossocial, além de apontar ausência/ineficiência da comunicação interprofissional.

Categoria 2 - Recursos: humanos e materiais (presente em 12 dos 18 artigos). Os recursos humanos de que tratam essa categoria relacionam-se tanto à qualificação dos profissionais que adentram o serviço ou já estão atuando, quanto ao número de profissionais para o serviço, que se mostrou insuficiente, o que gera sobrecarga e impacta negativamente na prestação de assistência. Quanto aos materiais, diz respeito à ausência de insumos necessários para a realização de atividades pedagógicas e assistenciais nos serviços e também quanto ao investimento financeiro, quer para aquisição dos matérias, quer para investir nas estruturas físicas (e/ou aquisição de espaço próprio) para os serviços.

Categoria 3 - Gestão (presente em três dos 18 artigos). Apenas três dos artigos apontavam problemas de gestão do serviço; todavia revelaram desde problemas com o processo de escolha da pessoa gestora a dificuldades organizacionais, falta de vontade política em investir, em especial financeiramente, e (re)formular os serviços de modo a implementá-los, quer por meio da qualificação dos profissionais (incluindo os próprios gestores), quer na organização e planejamento do cuidado.

Categoria 4 - Assistência tradicional/manicomial (presente em quatro dos 18 artigos). Nessa categoria foram encontrados desafios que revelaram dificuldades dos serviços que compõem a rede em superar o modelo assistencial asilar e medicalizado.

Categoria 5 - Outros. Os desafios expressos nessa categoria aparecerem em menor frequência, porém considerados de relevante significado para a implementação da RAPS, foram assim nomeados: organização territorial/acessibilidade (3/18), ausência de espaços e ações especializadas para crianças (1/18), negligência da família (2/18) e ausência de ações que integrem (e valorizem) a família no processo de cuidado (2/18).

Categoria 1 – Articulação da rede e efetivação do matriciamento

As propostas de Apoio Matricial (AM) em saúde mental surgiram da necessidade de a Atenção Básica (AB) incorporar saberes e práticas das especialidades em saúde mental, visto que nenhum especialista, isoladamente, poderá assegurar uma abordagem integral à saúde. Assim, o matriciamento se efetiva pela troca de saberes entre Equipes de Referência (EqR), Estratégia de Saúde da Família (ESF) e profissionais especialistas (do CAPS), que constroem, juntos, espaços de comunicação e diretrizes, clínicas e sanitárias, em prol da promoção de um cuidado e acompanhamento integral do paciente (DOMITTI e CAMPOS, 2006; DIMENSTEIN et al., 2009; CUNHA e CAMPOS, 2011).

Apesar de o atendimento conjunto ser enriquecedor e muitos profissionais preferirem essa modalidade, ainda se percebem alguns desafios para a adoção dessa metodologia de trabalho. Assim, nos resultados emergiram diversos desafios para efetivação do apoio matricial e consequente articulação da rede.

Os achados apontam para equipes de trabalho com dificuldade em atuar de forma integrada e com pouco compreensão acerca do processo de trabalho de matriciamento e o importante papel da ESF nessa estratégia. Há uma atuação limitada das ESF quanto à tomada de decisões (destaque-se seleção de casos para discussão) e autonomia enquanto equipe de referência. Ademais, há resistência/dificuldade das equipes em integrar os cuidados em saúde mental na rotina diária e em responsabilizar-se pelo paciente em sofrimento psíquico, justificada pela falta de conhecimento específico para tal, além de dificuldade na integração e na retaguarda do serviço especializado do CAPS. Logo, nota-se um efetivo descompasso e distanciamento na atuação do apoio matricial dos objetivos apontados para o perfil do apoiador, bem como do papel da ESF como integrante da rede de atenção psicossocial (HIRDES, 2015; COSTA et al., 2015).

Costa et al. (2015) acrescem ainda que os desafios para a construção da prática do AM passam pelo reconhecimento dos sistemas de valores e significados que fundamentam tanto a formação como a organização do processo de trabalho em saúde, com o propósito de dar uma resposta às fragilidades e obstáculos de uma prática integral do cuidado.

Surgiram desafios também na articulação do CAPS com o território da rede. Esse serviço tem papel de gerenciador da rede de atenção psicossocial, porém os desafios apontados caracterizam-se pela centralização destes em si mesmos, encapsulando suas ações, impossibilitando a abertura ao território e atuando em substituição à função e lugar das equipes da Atenção Básica na RAPS, mesmo tendo demandas próprias e sendo impossível dar conta de tal substituição. Esses desafios desfavorecem o matriciamento, enfraquecem a lógica territorial-comunitária e impedem o avanço na constituição de uma prática para fora dos muros do CAPS, de modo a oportunizar o conhecimento da realidade e aproximá-lo do contexto do usuário (SILVA e PINHO, 2015; LIMA e DIMENSTEIN, 2016).

Outro desafio que desfavorece o matriciamento são as relações de trabalho, ainda muito centradas no profissional médico CAPS e médico ESF, ou seja, medicocentradas, com ações realizadas individualmente e pouco discutidas em equipe, limitando a comunicação, as decisões clínicas e a condução dos casos no AM. Importante ressaltar que as equipes são formadas também por outros profissionais, como enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais e agentes comunitários de saúde que corroboram igualmente no acompanhamento de usuários e condução das ações de saúde mental na comunidade. Por isso, ações medicocentradas inviabilizam a construção efetiva de projetos terapêuticos integrados com os núcleos de saberes dos vários profissionais que compõem as equipes (JORGE et al., 2015; CUNHA e GALERA, 2016).

Acresce-se ainda a necessidade de retirar do CAPS o papel de única referência para a construção de uma rede intersetorial fortalecida que se corresponsabilize em conjunto com a atenção em saúde mental. Pois, ainda que o CAPS seja o serviço estratégico nesse processo, não deve ser o único responsável ou o centralizador do cuidado (SILVA e PINHO, 2015), sobretudo porque há as Unidades Básicas de Saúde como porta de entrada do usuário na rede de assistência.

Surgiram também importantes desafios quanto à organização do fluxo de referência e contrarreferência (CLEMENTINO et al., 2016) e na articulação entre os componentes específicos da rede, tal como: CAPS infantil (TSZESNIOSKI et al., 2015), CAPS álcool e drogas, sobretudo pela fragilidade na rede integral de atenção psicossocial aos usuários de drogas (LISBÔA, BRÊDA e ALBUQUERQUE, 2016), Residências Terapêuticas (FREIRE e CABRAL, 2016) e Serviço de Assistência Móvel de Urgência (SAMU) que, por vezes, age sem diálogo com os profissionais da saúde mental, sobretudo pelos poucos dispositivos disponíveis que favoreçam a construção de instrumentos, saberes e práticas para a consolidação efetiva de uma abordagem integral e humanizada o que, na maioria das vezes, resultam em ações precárias e não integradas (BRITO, BONFADA e GUIMARÃES, 2015; CARVALHO e DELGADO, 2015).

O apoio matricial é ferramenta que opera continuamente, articulando os serviços de forma a responder as exigências da lógica territorial e garantir o desenvolvimento de ações integrais em saúde. Ao articular a rede, o apoio matricial se inclina contra o encapsulamento, produz um efeito reorganizador das demandas de saúde mental na rede, possibilitando melhor compreensão e diferenciação das situações que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem ser acolhidas e/ou acompanhadas pela ESF, ou seja, melhora a distribuição e adequação dos usuários dentro dos pontos de assistência em sintonia com suas demandas, evitando que todas elas sejam dirigidas ao CAPS, superlotando-o (BEZERRA e DIMENSTEIN, 2008; OLIVEIRA, 2011).

Categoria 2 – Recursos humanos e materiais

Os desafios identificados no contexto dos recursos humanos não se limitaram somente ao dimensionamento de pessoal, mas também à necessidade de qualificação dos profissionais que compõem a rede, tanto para os que adentram o serviço quanto para aqueles que já compõem as equipes que integram a RAPS.

Costa et al. (2015) e Carvalho e Delgado (2015) apontam que, quanto à dimensão educacional, é imprescindível que haja educação permanente para os profissionais de saúde, em especial no contexto do apoio matricial, de modo a favorecer e fortalecer os saberes e práticas desses profissionais, sobretudo na atenção primária, visto que os profissionais desse braço da rede sentem-se despreparados e inaptos para atender as demandas de saúde mental.

A qualificação profissional também é necessária em outros serviços, de forma que contribua para que os profissionais melhorem suas práticas de classificação do paciente, coleta de dados e encaminhamentos aos serviços especializados da rede (GONZAGA e NAKAMURA, 2015), bem como contribua para os cuidados de urgência e emergência psiquiátrica (BRITO, BONFADA e GUIMARÃES, 2015).

Desvelaram-se também dificuldades que os médicos da atenção primária têm em prescrever psicotrópicos, ficando dependentes da equipe do CAPS (JORGE et al., 2015); de coordenadores da área de saúde mental com pouca qualificação (CLEMENTINO et al., 2016); falha na formação ou pouca especialização dos profissionais para a reabilitação psicossocial e atuação em saúde mental; ausência de preparação para o ingresso nos serviços da rede, acentuada pela falta de conhecimento no início da prática profissional e ausência de programas de capacitação ou orientação sobre o trabalho (SANTOS et al., 2015; SANTANA e ALVES, 2015; CUNHA e GALERA, 2016).

Frente a esses desafios é evidente a necessidade de cursos preparatórios e treinamentos específicos (tanto para profissionais da área de gestão quanto da assistência) porém, o investimento da gestão municipal em processos de Educação Permanente em Saúde (EPS) ainda é incipiente, principalmente para os profissionais recém inseridos, além da falta de recursos financeiros, que também é um desafio a ser superado (FREIRE e CABRAL, 2016).

Além dos desafios frente à necessidade de qualificação profissional, problemas relacionados ao número de profissionais, distribuição de carga horária e qualidade dos vínculos desses com os serviços específicos da saúde mental, são fortemente percebidos nos resultados.

Aponta-se que os dispositivos contam com um número reduzido/insuficiente de profissionais, (CARVALHO e DELGADO, 2015; SANTANA e ALVES, 2015; LISBÔA, BRÊDA e ALBUQUERQUE, 2016). E essa escassez interliga-se a outros problemas, gerando sobrecarga de trabalho e má distribuição de carga horária (SANTANA e ALVES, 2015; CLEMENTINO et al., 2016).

Esses desafios assumem proporções maiores refletidos na alta demanda pelo serviço, na superlotação, dificuldade para manter o quadro de pessoal, sobretudo pelos baixos salários e frágeis vínculos empregatícios (SANTANA e ALVES, 2015; LISBÔA, BRÊDA e ALBUQUERQUE, 2016; CLEMENTINO et al., 2016).

Clementino et al. (2016) reforçam o quanto é imprescindível rever as condições dos vínculos empregatícios dos trabalhadores em saúde mental, visto que a qualidade das relações e condições de trabalho, incluindo a estabilidade, caracterizam-se como fundamentais para incentivar os profissionais à qualificação, favorecer o trabalho em equipe e o vínculo com os usuários, além de minimizar sentimentos de desmotivação e insatisfação da equipe frente ao trabalho na rede de saúde mental, tal como destacado por Soares et al. (2015) em sua pesquisa sobre os desafios e possibilidades na gestão do trabalho no campo da saúde mental.

É preciso ainda acrescentar a frequente falta de recursos materiais básicos para a realização de oficinas terapêuticas, os quais muitas vezes são comprados com o salário dos próprios funcionários (CARVALHO e DELGADO, 2015). Há necessidade de prédios próprios ou, pelo menos, que sejam estruturados de modo a suprir as necessidades das equipes de modo a desfrutarem de espaços para discutir questões vivenciadas pelos profissionais, realização de reuniões, ações do matriciamento ou apenas para convivência da equipe e usuários (JORGE et al., 2015; SANTANA e ALVES, 2015, CLEMENTINO et al., 2016).

Essas deficiências geram dificuldades em efetivar o Apoio Matricial e em construir coletivamente o projeto terapêutico, favorecendo agrupamentos paralelos, por conveniência, sem planos de tratamento e de forma aleatória, sem direcionamento (CLEMENTINO et al., 2016).

Categoria 3 – Gestão

Os desafios apontados no que diz respeito à gestão (quer do poder público quer da gerência dos próprios serviços) expressaram-se de formas variadas. Revelaram-se desde problemas com o processo de escolha da pessoa gestora a dificuldades organizacionais, falta de vontade política em investir, em especial financeiramente, e (re)formular os serviços de modo a implementá-los, quer por meio da qualificação dos profissionais (incluindo os próprios gestores), quer na organização e planejamento do cuidado.

O trabalho dos gestores é limitado a ações pontuais, com pouca resolutividade e baixa efetividade, sobretudo pela falta de vontade política, de organização, planejamento das ações, competência e empatia do gestor com o serviço, posto que, no processo de escolha deste, nem sempre se leva em conta qualidades e competências (FREIRE e CABRAL, 2016).

Carvalho e Delgado (2015) destacam ainda a falta de planejamento dos municípios para formação e estruturação efetiva da rede de saúde mental, o que reflete na qualidade dos serviços, favorecendo a prática de cuidados improvisados, segregados e com dificuldades em prover adequadamente serviços de suporte à saúde mental de sua população.

Dessa forma, o trabalho de gerir finda por limitar-se a mera conduta organizacional e burocrática, despreocupada com o cuidado, respeito à equipe e qualificação continuada dos profissionais para que possam ofertar um trabalho com mais qualidade, atuando de modo integrado e por meio de uma gestão compartilhada, que favoreça não apenas a proximidade da equipe, como também a efetividade de ações que valorizem as reais necessidades dos pacientes que acessam os serviços (CARVALHO e DELGADO, 2015; SOARES, SOUSA e QUEIROZ, 2015; FREIRE e CABRAL, 2016).

Categoria 4 – Assistência Tradicional/Manicomial

As práticas de assistências manicomiais ainda ecoam, quer efetivadas por cuidados puramente medicalizados, limitados à administração de psicofármacos e contenções físicas – como justificativa de que o paciente em surto é potencialmente violento e precisa ser contido –, quer segregando-os do convívio social, justificando-se pelo risco que ele representa, dada sua condição psíquica, ou judicial.

Jorge et al. (2015) apontam a discrepância dos serviços frente às propostas da Reforma Psiquiátrica no que diz respeito à necessidade de efetivar os cuidados em saúde mental pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), sobretudo pelo despreparo profissional em lidar com os casos clínicos de saúde mental que chegam ao serviço, além da visão limitada destes quanto ao seu papel de integrantes do apoio matricial. Acrescem ainda dificuldades das equipes em ofertar, de modo contínuo e com qualidade, cuidados aos usuários em sofrimento psíquico em detrimento das várias atividades desenvolvidas no cotidiano assistencial, próprias da ESF.

Destaque-se que as ações ainda são geridas pela terapia farmacológica, onde os pacientes ainda recebem classificações segundo a gravidade do seu caso clínico e medidas pelo tempo em que estão em uso de psicofármacos ou pela dificuldade de resposta a eles. Frente a isso, muitos profissionais acreditam na incapacidade do paciente, condicionando-o à necessidade de vigilância e cuidados constantes e suporte para a vida toda, dada sua vulnerabilidade (JORGE et al., 2015; GONZAGA e NAKAMURA, 2015).

No campo do atendimento pré-hospitalar em apoio às urgências psiquiátricas também se expressaram práticas manicomiais, como reflexo da falta de preparo e preconceito da equipe frente ao sujeito em sofrimento psíquico. Tais práticas são figuradas na contenção mecânica repressiva e violenta, executada pela polícia, em vistas do poder militar de intimidação e medo que a maioria dos pacientes psiquiátricos tem da polícia (BRITO, BONFADA e GUIMARÃES, 2015).

Os autores refletem também que parece haver uma necessidade justificada para o exercício da hostilidade sobre a pessoa em crise, pautada, sobretudo no medo da equipe em não entrar em atrito com o paciente durante a intervenção em crises psíquicas, mesmo pós-contenção. Dessa forma, a equipe precisa rever suas práticas e habilidades, pois elas vão de encontro ao ideário da Reforma Psiquiátrica Brasileira e distam dos princípios e diretrizes do SUS, sobretudo da integralidade e equidade, prejudicando a assistência.

Tais práticas se concretizam sem levar em consideração o diálogo, singularidade do sofrimento psíquico do paciente ou sem a adoção de estratégias terapêuticas condizentes com cada individualidade. Assim, engessa-se a vida do paciente, sua dimensão singular, protagonismo e autonomia são negados, o que leva à perda da essência do projeto terapêutico (JORGE et al., 2015; GONZAGA e NAKAMURA, 2015; BRITO, BONFADA e GUIMARÃES, 2015).

Em um Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), apresentado na pesquisa de Santana e Alves (2015), os autores mostram que o nosocômio, apesar de trazer uma realidade e perfil distintos de pacientes, traz práticas semelhantes às dos demais serviços, porém ainda mais concretas, em especial na limitação dos cuidados ao paciente, segregação social deste e despreocupação quanto à descaracterização prisional do hospital.

O cuidado também é pautado na medicalização, pincelado por descrédito (por parte dos profissionais), quanto à eficácia dos tratamentos dispensados e ideia de punição estabelecida como primeiro objetivo, ficando o tratamento como um complemento à pena. Acresce-se também o aprisionamento dos pacientes em celas, reclusos, segregados e isolados da sociedade, com a justificada necessidade de garantir a segurança dos demais núcleos sociais, tolhendo assim os pacientes e vigiando-os pelos olhos de agentes penitenciários (SANTANA e ALVES, 2015).

Além disso, há sobreposição da vertente prisional à hospitalar, com atuação independente, ressaltando a incompatibilidade entre os interesses médicos e penais, configurando-os como serviços em atrito. Este se encontra emoldurado pela forte representação social, tanto na percepção da própria sociedade, que o vê como serviço necessário para contenção de pessoas que precisam pagar pelo crime e pela loucura que carregam, quanto pelos profissionais envolvidos que veem apenas a função hospitalar e de segurança pública, ignorando totalmente o papel de reinserção social que eles têm frente ao paciente (SANTANA e ALVES, 2015).

Logo o que se percebe é a preservação do passado da psiquiatria e o (des) tratamento da loucura, pautada no isolamento do paciente que permanece pseudoacompanhado por uma equipe multiprofissional e rede de assistência especializada mas que, por vezes, não beneficia o paciente com seus saberes e práticas propostas pela RPB, simplesmente por ser mais prático e fácil executar ações simples de conter física e quimicamente o usuário para mantê-lo longe dos grupos sociais, de modo a evitar a contaminar a sociedade com sua loucura. Tais realidades nos fazem refletir acerca de um verdadeiro retrocesso na RPB, sem que ao menos esta tenha sido efetivada inteiramente.

Categoria 5 – Outros

Outros desafios, com menor expressividade nos artigos, porém com grande peso no contexto da implementação da Rede de Saúde Mental, também foram identificados e precisam ser superados ou minorados. São eles: organização territorial; ausência de espaços e ações especializadas para crianças; negligência da família e ausência de ações que integrem (e valorizem) a família no processo de cuidado.

A organização territorial, ou a falta desta, muitas vezes se expressa como barreira de acesso tanto para usuários, em todos os níveis de assistência, quanto para profissionais, que encontram dificuldades de acessar o território geográfico e subjetivo, simbólico e social no qual o paciente se insere. Os autores apontam a necessidade de organização do território, com base comunitária, de modo a favorecer o cuidado, acolhimento efetivo e a construção de estratégias de cuidado que conversem com as necessidades, os desejos e as realidades de cada sujeito, sobretudo, garantindo o acesso aos serviços em todos os níveis (CARVALHO e DELGADO, 2015; SILVA e PINHO, 2016; CLEMENTINO et al., 2016). Infelizmente, vive-se, atualmente uma tendencia de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária, apontando assim para retrocessos na assistência psiquiátrica brasileira. (CRUZ, GONÇALVES e DELGADO, 2020).

Outro desafio apontado foi a necessidade de espaços e ações especializados para crianças, para que se possa estabelecer vínculos mais fortes delas com o território no qual ela se insere, de modo a integrar todas as esferas envolvidas no processo de cuidado (família, escolas, unidades de saúde e centros de atenção psicossocial) (TSZESNIOSKI et al., 2015).

Um desafio importante a ser superado é também a negligência da família de origem frente ao paciente em sofrimento psíquico, tanto no acompanhamento e contribuição no processo de cuidado quanto no acolhimento deste, sobretudo após longos períodos de internação.

Nos resultados encontrados tal desmazelo foi expresso sob forma de abandono dos pacientes, quer pela exclusão social, quer pela justificativa de não ter condições financeiras de manter mais um adulto no contexto familiar, inviabilizando a inclusão do usuário. Infelizmente, este é um cenário difícil de reverter, sobretudo porque muitos nem sequer sabem onde encontrar seus familiares ou, mesmo os encontrando, não existe por parte da família o interesse em resgatar os laços familiares (SANTANA e ALVES, 2015; LEITE, OLIVEIRA e SCARPARO, 2015).

Por outro lado, Lisbôa, Brêda e Albuquerque (2016) e Camatta, Tocantins e Schneider (2016) chamam a atenção para inexistência de ações de saúde mental que envolvam e deem suporte aos familiares de usuários com transtorno mental, visto que estes também sofrem com as demandas do seu familiar. É necessário incorporá-las ao processo de cuidado não apenas como fonte de informação ou local para onde devolver o paciente, mas também como (co)responsável pelo cuidado e também como um paciente importante que precisa de informações que corroborem com seu papel de cuidador, pois isso integra e favorece o vínculo e o cuidado.

Além disso, Camatta, Tocantins e Schneider (2016), em sua pesquisa sobre ações de saúde mental na Estratégia Saúde da Família (ESF), identificaram que a família expressou a necessidade de não somente estabelecer uma relação social com a ESF, como também ter um espaço de relação e encontro, no qual pudesse compartilhar suas vivências (individualmente ou em grupo) e encontrar suporte para superarem angústias, ansiedades e sentimentos de impotência frente às adversidades do cuidado que precisam prestar ao seu familiar em sofrimento psíquico.

 

CONCLUSÃO

Implementar a RAPS relaciona-se, diretamente, com as formas de perceber a saúde mental e o sofrimento psíquico no contexto histórico-social. Ainda vivemos os reflexos e mesmo a imagem real e, por vezes engessada, do sofrimento psíquico que segrega e exclui o paciente, sob a égide da segurança social. Tal percepção distorcida e manicomial eleva barreiras sociais, limita a atuação da RAPS e impacta diretamente na forma de conduzir o cuidado em saúde mental, quer no campo assistencial quer gerencial.

A articulação entre os diversos setores da rede de saúde favorece o matriciamento como ferramenta potente em saúde mental, principalmente por proporcionar às equipes das Unidade Básicas de Saúde serem, de fato, porta de entrada do usuário na rede. Porém, esse é um desafio a ser superado, visto que as ações ainda são centralizadas no CAPS. O apoio matricial nem sempre se efetiva de maneira eficaz, limita-se à seleção isolada de casos, que mina a autonomia dos profissionais, sobretudo da atenção básica, cujos servidores se veem despreparados para lidar com os casos específicos de saúde mental que chegam a eles. Por conseguinte, impede e/ou fragiliza a construção de vínculo forte com os usuários.

A inserção da saúde mental na AB é necessária para o avanço da RPB, e nessa conjuntura o apoio matricial como ferramenta potente não é uma panaceia resolutiva de todos os problemas, mas ferramenta indispensável ao campo da Atenção Psicossocial (FIGUEIREDO e ONOCKO CAMPOS, 2009).

Todavia, os profissionais que fazem parte da RAPS percebem-se despreparados para tal interação, o que justifica a necessidade de capacitação/educação continuada de forma que favoreçam o fortalecimento profissional para troca de experiências e saberes, sobretudo porque a implementação efetiva de atividades de educação permanente em saúde, voltadas à equipe multiprofissional e centradas em saúde mental, contribuem sobremaneira para a redefinição do fazer na atenção (TANAKA e RIBEIRO, 2009; HIRDES e ROSA SILVA, 2014; PERES et al., 2018).

Ademais, outro desafio importante a ser superado é o investimento financeiro na infraestrutura dos estabelecimentos que integram a RAPS, disponibilização de materiais básicos para oficinas, além de capacitação e formação continuada dos profissionais (em especial da AB) para a assistência em saúde mental, pois essa qualificação reflete e impacta diretamente na qualidade do cuidado. Acresce-se também a necessidade de reorganização política e compromisso de gestão no contexto da organização dos serviços e investimento financeiro, bem como melhor distribuição dos recursos.

Os desafios relacionados à participação da família no processo de cuidado também precisam ser suplantados, tanto na oferta de ações que a integrem (e valorizem), quanto na apropriação desta como corresponsável pelo cuidado do paciente. Os familiares são considerados importantes atores para o plano de cuidados e necessitam de apoio ou mesmo uma rede territorial que os auxiliem pois, em sua maioria, desconhecem a importância de sua participação e como ativar laços com dispositivos sociais apoiadores no cuidado da pessoa com sofrimento psíquico (COVELO e BADARÓ-MOREIRA, 2015).

Não obstante os desafios ainda em curso de uma reforma em pleno devir, a atual conjuntura social e política tem trazido impactos negativos e revelado fragilidades, posto que muitas conquistas (no campo político, social e legal) tem sido minadas antes mesmo de serem apreendidas por todos os atores que compõem a rede. Em um contexto pós-pandemia de COVID-19, vivemos o avesso da Reforma, fala-se em contrarreforma psiquiátrica (NUNES et al., 2019).

Peres et al. (2018) nos recordam que em nosso país, apesar das dificuldades, a luta antimanicomial está em processo, onde a RAPS, diante de fragilidades complexas para sua construção, efetivação e manutenção, necessita de uma variedade de atores sociais, vontade política e ações mais efetivas.

Portanto, é possível e urgente que sejam sobrepujados esses desafios, de modo que se concretize a RAPS, não apenas como proposta metodológica, mas como política que se faz e refaz à medida que se olha e percebe-se mais de perto as necessidades dos usuários em sofrimento psíquico. Para tanto, é necessário que haja mobilização, não apenas para suplantar os desafios que, por ora, ainda assolam a implementação da RAPS no Brasil, mas também no sentido de evitar perdas de mecanismos de proteção social, garantia de manutenção dos direitos conquistados, das pessoas em sofrimento psíquico.

 

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