ISSN: 1679-4427 | On-line: 1984-980X

Desafio do ensino e das competências em saúde no modelo psicossocial nos centros de atenção psicossocial álcool e drogas

Challenge of teaching and health skills in the psychosocial model in psychosocial care centers for alcohol and drugs

Desafío de las competencias docentes y sanitarias en el modelo psicosocial en los centros de atención psicosocial de alcohol y drogas

Maria de Nazareth Rodrigues Malcher de Oliveira SilvaI; Adelma PimenteII

DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/1679-4427.v14n26.0002

I. Universidade de Brasília, Faculdade Ceilândia, Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de Turim e Universidade Federal do Pará. Mestra e Doutora em Psicologia Clínica (UnB)
II. Universidade Federal do Pará, Programa de Psicologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Pós-doutorado em Psicologia e Psicopatologia (Universidade de Évora/Portugal) e em Ciências Interdisciplinares da Saúde (UNIFESP)

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar a análise documental sobre a formação e a educação continuada e permanente de profissionais de saúde que atuam em Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas. Trata-se de uma pesquisa com estratégias metodológicas mistas: a) análise de documentos governamentais sobre o ensino superior e a aprendizagem em serviço; b) entrevistas semiestruturadas com os profissionais; análise de conteúdos e triangulação dos dados. Entre os resultados identificaram-se alguns avanços no ensino superior em saúde e na educação permanente como as políticas setoriais. Concluiu-se que ainda é baixo o incentivo à educação continuada e permanente nos serviços e na efetividade do cuidado, causados pelas fragilidades da formação e ao reduzido investimento econômico nos serviços, dificultando a inclusão de tecnologias inovadoras necessárias ao implemento da política de saúde mental.

Palavras-chave: Ensino em saúde; Aprendizagens; Competências; CAPS AD.


Abstract

The objective of this study is to reflect on the higher education in health of the psychosocial model and the competences of professionals in the Psychosocial Care Centers for Alcohol and Drugs. The method was qualitative, through the theoretical study of government documents on higher education and in-service learning and empirical with interviews with professionals. Analyzed the contents and triangulated the results. Results show advances in higher education in health and permanent education through sectoral policies. However, the incentive in the reality of services and consequences in the effectiveness of care is still low. Weaknesses in training and service scenario make it difficult to include innovative technologies corresponding to mental health policy.

Keywords: Teaching in health; Learnings; Skills; Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs.


Resumen

El objetivo de este estudio es reflexionar sobre la educación superior en salud del modelo psicosocial y las competencias de los profesionales en los Centros de Atención Psicosocial de Alcohol y Drogas. El método fue cualitativo, a través del estudio teórico de documentos gubernamentales sobre educación superior y aprendizaje en servicio y empírico con entrevistas a profesionales. Analizó los contenidos y trianguló los resultados. Los resultados muestran avances en la educación superior en salud y educación permanente a través de políticas sectoriales. Sin embargo, el incentivo en la realidad de los servicios y las consecuencias en la efectividad de la atención aún es bajo. Las debilidades en el escenario de formación y servicio dificultan la inclusión de tecnologías innovadoras correspondientes a la política de salud mental.

Palabras clave: Educación para la salud; Aprendizajes; Habilidades; Centros de Atención Psicosocial de Alcohol y Drogas.

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo apresentamos uma reflexão baseada no entrelaçamento entre uma análise de documentos governamentais e a percepção de profissionais de saúde sobre o modelo psicossocial de saúde, usado em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. As atividades de profissionais que atuam em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) são constituídas historicamente por vários modelos epistemológicos presentes nas políticas públicas e por diversas teorias educacionais que norteiam os projetos pedagógicos dos cursos superiores em saúde. Para ilustrar a afirmação situamos o processo da Reforma Psiquiátrica da política de saúde mental e o paradigma do cuidado, ambos referencias das ações governamentais dos anos 2000, caracterizados pela inclusão de práticas e estratégias terapêuticas inovadoras nos serviços e pela atualização da nomenclatura doença que substitui o enfoque do sintoma para destacar a vivência, por meio da inserção da terminologia pessoas em sofrimento psíquico (SILVA, ABBAD e MONTEZANO, 2019).

Lembramos que o conceito de paradigma, elaborado por Khun (1978), implica na concepção de revoluções cientificas; contudo, no âmbito das atividades profissionais e das politicas públicas, embora estejam presentes algumas mudanças profundas que se assemelham à concepção de paradigmas têm-se, mais fortemente nos modelos pedagógicos, os discursos sobre saberes.

Sobre o paradigma do cuidado, a partir de 2021 foi regulamentada a Lei 10.216 que o instituiu como parâmetro antropológico na política de saúde mental, incorporando, além do hospital, outros serviços e estratégias, denominadas substitutivas ao antigo modelo, com intervenções em espaços extra hospitalares, na comunidade e com envolvimento intersetorial (BRASIL, 2011). Entretanto, este modelo permanece em processo de consolidação em todos os estados brasileiros, com baixa cobertura dos dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que responda pelas demandas em saúde mental (BRASIL, 2004).

Quanto à Política Nacional sobre Drogas, iniciou-se em 1998, focada na abordagem da redução de danos das drogas e, em 2006, integrou-se a outras políticas intersetoriais, com ações de descentralização, estreitando laços com a sociedade e a comunidade científica e focando no tratamento integral e de inserção social de pessoas em uso problemático de drogas, por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), fazendo parte dessa rede os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas, doravante CAPS AD (BRASIL, 2001, 2004, 2011, 2017).

O CAPS AD adota o modelo psicossocial de redução de danos e inserção social por meio de uma interlocução com a rede intersetorial e no território do paciente. Neste cenário, há necessidade de que os profissionais desenvolvam nos serviços um perfil de competências e habilidades de conhecimentos científicos oriundos de suas formações de origem, mas também saberes ligados à gestão do serviço, à produção de evidências, ao trabalho em equipe multi e interprofissional, à atuação em rede intersetorial e à adoção de novas práticas e estratégias terapêuticas que qualifiquem a atenção e a segurança das pessoas atendidas nestes serviços.

Acerca do perfil de competências e habilidades para o modelo psicossocial em saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS), é considerado por diversos autores como um dos nós críticos para inovação em saúde, no sentido de desenvolver novas formas e tecnologias diferentes das adotadas no modelo anterior, favorecendo a singularidade dos processos produtivos em saúde e a inserção social, fazendo o profissional de saúde um operador do cuidado e, por isso, deveria ser capacitado para desenvolver processos de trabalhos e construir rotinas de práticas e tecnologias em saúde, denominadas de baixa exigência (BRASIL, 2004), ou tecnologias leves (MERHY, 2005; MORIN, 2010).

Portanto, o avanço tecnológico, a mudança do paradigma do cuidado em saúde mental, a necessidade do trabalho interdisciplinar, a heterogeneidade dos sujeitos e a busca por novas técnicas e tecnologias efetivas no cuidado em saúde promovida pela politica de saúde mental geraram demandas na formação dos profissionais como, por exemplo, o ensino em saúde e a formação dos futuros trabalhadores, indicando que as instituições de Ensino Superior em Saúde (IES) deveriam se apoiar, predominantemente, nas tecnologias leves ou de baixa exigência (BRASIL, 2004; MERHY, 2005; WHO, 2008) para investir nas competências do campo epistemológico de saúde mental.

A partir de 2009, diversos documentos governamentais incentivaram a formação das equipes de profissionais, como a Portaria 3.088, que reorientou os dispositivos de cuidado da RAPS, incentivando a promoção de estratégias de educação permanente. Em 2010, foi lançado o plano Crack é possível vencer, com ações nos eixos: cuidado, prevenção e autoridade no qual, entre diversos objetivos, regulamentou a promoção da educação permanente com os profissionais da rede intersetorial, influenciado também pela preocupação dos organismos internacionais e nacionais com o avanço no consumo de drogas e suas vulnerabilidades associadas ao uso abusivo (BRASIL, 2010).

Alguns autores, em pesquisas desenvolvidas com trabalhadores do setor público, criticam as práticas médicas e a formação nas universidades brasileiras, referindo que ainda permanecem centradas em práticas e saberes técnicos, com pouca ênfase no modelo de cuidado da política de saúde mental, gerando baixa adesão e alta rotatividade dos profissionais nos serviços (CASTRO e CAMPOS, 2014; MUROFUSE et al., 2009).

Outros autores discutem sobre a necessidade de investimento em modelos de educação permanente em serviço como fio condutor do desenvolvimento de práticas inovadoras em saúde mental, que busquem entender a realidade para transformá-la (ONOCKO-CAMPOS et al., 2020; VASCONCELOS, 2009; SILVA, ABBAD e MONTEZANO, 2019). Diante do exposto, afirma-se a relevância científica e social deste estudo.

 

O ENSINO EM SAÚDE

Os projetos pedagógicos dos cursos superiores em saúde, de um modo geral, são baseadas na transmissão do ensino da aplicação das tecnologias influenciados por três ocorrências históricas mundiais: 1) as concepções reducionistas das ciências do século XIX com o surgimento de ciências polidisciplinares; 2) a inclusão de domínios científicos e 3) a necessidade de entender a realidade complexa, circular, multirreferencial e contextualizada dos processos saúde-doença (MORIN, GADOUA e POTVIN, 2007; SGUISSARD, 2009; CASTRO e CAMPOS, 2014).

Além dos fatores citados, outros aspectos são relevantes na política educacional brasileira por contribuírem para a ampliação e a reformulação das diretrizes do SUS. Entre eles, a reorganização dos currículos dos cursos em saúde das Instituições de Ensino Superior; a reformulação das Diretrizes Curriculares dos cursos de graduação da área da saúde (DCN), que passaram a exigir uma formação baseada em competências generalista, humanizada, reflexiva e crítica de modo a contribuir para que os profissionais desenvolvam habilidades políticas, técnicas, éticas e pedagógicas para o enfrentamento de situações reais de vida e do trabalho (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2001; CASTRO e CAMPOS, 2014; SGUISSARD, 2009).

Outro aspecto incluso é a Educação Permanente em Saúde (EPS) dos profissionais, regida pela Portaria 198 GM/MS, de 13/02/2004, considerada importante estratégia para consolidar o modelo psicossocial do SUS (BRASIL, 2004; SGUISSARD, 2009). Entretanto, na prática, essa política se apresenta com baixa expressão nos programas educacionais, gerando baixa resolutividade para atender as necessidades de capacitação dos profissionais de saúde no trabalho, frente o tratamento na esfera de álcool e drogas (BRASIL, 2007; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).

 

MÉTODOS

Este estudo é de natureza qualitativa e descritiva, realizado em três etapas, a saber: Primeira: o estudo de documentos governamentais sobre ensino superior em saúde, aprendizagem em serviço e incentivos em capacitações sobre a problemática das drogas aos profissionais dos CAPS AD; Segunda: estudo empírico com profissionais dos CAPS AD, por meio de entrevistas semiestruturadas sobre as competências necessárias para o desenvolvimento do cuidado em saúde mental, o ensino superior e as necessidades de aprendizagem em serviço e Terceira: a análise dos conteúdos das etapas com triangulação dos resultados.

Na pesquisa em sites governamentais foram estudados 20 documentos, tais como: a Lei nº 9.394 (23/12/1996); a Lei nº 10.172 (09/01/2001); a Lei 10.861 (14/04/2004); a Lei 11.096 (13/01/2005); o Decreto n. 2.207 (15/04/1997); o Decreto nº 5.773 (09/05/2006); o Decreto nº 6096 (24/04/2007); a Resolução CNE/CES nº 3 (07/11/2001); o Parecer CNE/CES nº 1.133 (07/08/2001); o Parecer CNE/CES nº 492 (03/04/2001); o Parecer CNE/CES nº 62 (19/02/2004); o Parecer CNE/CES nº 1.210 (12/09/2001), além de publicações do Ministério da Educação [MEC] (2006, 2007, 2009), Ministério da Saúde [MS] (2004, 2009) e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais [INEP] (1999, 2006, 2012). Os dados levantados nesta etapa foram organizados em planilhas de conteúdo temático, com apresentação descritiva, triangulando com os dados empíricos.

O estudo empírico ocorreu em serviços substitutivos de saúde mental da RAPS, de atenção especializada, nominados de CAPS AD, habilitados pelo Ministério da Saúde, selecionados por conveniência, dos quais um foi do Município de São Paulo e dois do Distrito Federal, que foram chamados neste estudo como CAPS AD SP, CAPS AD DF 1 e CAPS AD DF 2 respectivamente.

Os três CAPS AD apresentaram características distintas e, durante o período do estudo, apresentavam 160 profissionais. Desse total, participaram das entrevistas 22 profissionais de diversas áreas, compondo uma amostra correspondente a 26,8%, nos quais sete no CAPS AD 1 (32%); oito no CAPS AD 2 (36%) e sete no CAPS AD SP (32%).

O Distrito Federal mostra-se com baixa cobertura (46,6%) com relação ao índice populacional de 100 mil habitantes, mas que, a partir de 2011, apresentou expansão, com abertura de CAPS AD, em virtude do plano Crack é possível vencer. Enquanto o serviço do município de São Paulo foi considerado como serviço de qualidade e efetividade no tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas e indicado pelo Ministério da Saúde como serviço de referência formativa do Brasil em conjunto com mais de 21 centros de tratamento de diferentes partes do mundo (WHO, 2008).

O instrumento utilizado foi uma entrevista semiestruturada com questões fechadas sobre dados sociodemográficos e outra com questões abertas sobre a formação dos profissionais, o perfil de competências necessárias para o trabalho nos CAPS AD e sobre experiências e oportunidades de aprendizagem no serviço.

As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas integralmente, sendo analisadas pelo conteúdo da temática categorial com as respostas dos participantes; levantamento de categorias de conteúdo; seleção das unidades de conteúdo definidas; reorganização das categorias; cálculo da frequência de evocações por categorias de conteúdo e identificação das falas mais representativas das mesmas, que são apresentadas descritivamente, triangulando os dados e ilustrado com vinhetas extraídas do corpus de análise.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (CEP/FS/UnB) sob o nº 551.779, e todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A triangulação dos resultados do estudo teórico e empírico apresentou dois aspectos principais representativos, como: 1) o processo histórico sobre a educação superior em saúde das IES enquanto politica de educação em saúde e 2) a percepção dos profissionais sobre seu processo formativo para o trabalho nos CAPS AD.

A análise de conteúdo temático das entrevistas possibilitou três categorias temáticas, com respectivas frequências das evocações: i) a trajetória da formação profissional; ii) as habilidades e competências para atuar no CAPS AD, com 42 evocações e iii) a educação permanente e aprendizagem em serviço com 95 evocações.

Os participantes do estudo empírico apresentaram uma prevalência sobre o perfil sociodemográficos de: i) profissionais do sexo feminino (84%); ii) de formações diversas, como médicos (clinico e psiquiatra), psicólogos, técnicos de enfermagem, enfermeiros e assistentes sociais; iii) vínculo empregatício estatutário; iv) com jornada semanal de 20 ou 40 horas e v) tempo de serviço nos CAPS AD de 3 a 4 anos (69%). O CAPS AD SP apresentou especificidades singulares com relação aos outros serviços com profissionais da Pedagogia e da Educação Física, além de contratação do tipo celetistas na equipe técnica.

A primeira categoria foi levantada do estudo teórico que possibilitou a reflexão do processo evolutivo da educação superior em saúde, demonstrado em síntese na Tabela 1, marcando suas representações influenciadas por mudanças de contextos sociais e políticos nacionais e internacionais.

 

 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20/12/1996), elaborada em 2001, em paralelo ao importante momento histórico, qual seja: o desenvolvimento do SUS e a nova abordagem do processo saúde-doença e determinantes sociais e do cuidado ampliado que possibilitou ao Brasil investir no contexto universitário com a integração curricular, a diversidade de cenários de aprendizagem e a oportunidades na formação permanente dos profissionais de saúde (BRASIL, 2013).

Neste sentido, dados do INEP (BRASIL, 2014) mostram processualmente, a partir de 2001, avanços na reformulação da educação superior brasileira para lidar com as necessidades e desafios do século XXI, por meio dos índices de ingressos e egressos nas IES públicas, mas também ainda a manutenção de problemáticas históricas, como: i) o avanço nos últimos anos de IES privadas de 118%; ii) a desigualdade na distribuição de vagas por regiões; iii) a dificuldade na interação da teoria com a prática no ensino e iv) a integração de diferentes abordagens pedagógicas, não fragmentadas, que possibilitassem um perfil de habilidades e competências descritas no Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos da saúde.

Entretanto, o estudo empírico mostrou que todo este processo destacado nos documentos governamentais sobre a política de educação superior em saúde nos últimos anos ainda não reflete no cotidiano dos profissionais nos serviços pois, conforme a trajetória dos participantes do estudo, os profissionais foram admitidos por contrato ou concurso público, mas sem oportunizar A escolha da área de atuação, desconsiderando suas experiências formativas e de aprendizagens. Sete deles referiram aspectos significativos que influenciam o desempenho, como o desejo de trocar de área/serviço, a inexperiência em atuar na saúde mental e a desmotivação para trabalhar com usuários de álcool e outras drogas.

No percurso formativo nas IES, esses profissionais afirmaram uma lacuna na inclusão de conteúdos sobre uso abusivo de álcool e outras drogas, mesmo sendo uma temática atual e transversal nos serviços de saúde. Além disso, essa área foi apresentada com vivências traumatizantes ao longo da carreira, com necessidades urgentes para aprendizagens em educação continuada e permanente em saúde.

[...] eu acho que assim, a gente cai de paraquedas aqui mesmo… que no meu primeiro estágio no CAPS no terceiro ano, eu apanhei do paciente, eu traumatizei assim [...] (Profissional do CAPS AD).

Este enfoque é corroborado por diversos autores (AMARANTE, 2008; MORIN, 2010; MUROFUSE et al., 2012) que afirmam que as IES até hoje ainda perpetuam aprendizagens com modelos centrados em tecnologias especializadas, disciplinas compartimentalizadas, ausência de práticas educativas, impossibilitando competências necessárias à compreensão da complexidade humana. No campo da problemática de drogas, Parreira e Silva (2015) afirmam ainda a dificuldade da relação teoria e prática.

No presente estudo, os profissionais levantaram as competências para o trabalho no CAPS, associando-as a habilidades respectivas, tais como: i) atitudes e motivação para o trabalho, por meio da capacidade de escuta - colocar-se no lugar do outro; acolher com boa vontade; querer ajudar o outro; respeitar o usuário; comprometer-se com o serviço; ser criativo e livre de preconceitos e ser empático; ii) o domínio de técnicas para atuação com conhecimentos específicos sobre o campo de atuação em drogas, o contexto, atribuições do trabalho e papel do serviço e iii) compreensão de ações gerenciais - desenvolver um trabalho multiprofissional em equipe interdisciplinar.

Porém, apesar de compreenderem essas competências, afirmam a necessidade de aprendizagens, mas citam dificuldades na participação em cursos, por diversos motivos (financeiros, indisponibilidade de tempo e liberação do serviço, cobertura extensa populacional com rotina sobrecarregada, equipes com baixa cobertura profissional, ausência de vínculo com o serviço, gerando consequentemente além de estresse e adoecimento dos profissionais, lacunas para aprendizagens sobre estratégias inovadores em saúde do modelo psicossocial), como ilustrado na narrativa abaixo:

[...] acontece muito estresse que são muito ligados à sobrecarga né, de uma região extensa, muitos atendimentos, muitas coisas para lidar no decorrer do dia [...] é lógico que se a gente tivesse mais Recursos Humanos, nós estaríamos muito mais no território [...] (Profissional do CAPS AD).

Portanto, a realidade dos profissionais dos CAPS AD do estudo apresenta outra realidade em relação aos documentos governamentais do estudo teórico. Ou seja, os documentos governamentais indicam que as tecnologias inovadoras em saúde mental reforçam a necessidade de competências especificas para atuar nos CAPS AD, incentivando a educação permanente como uma estratégia para os profissionais na produção do cuidado, de tecnologias inovadoras de cuidado e de reorganização dos serviços (BRASIL, 2011, 2010; WHO, 2008).

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) da World Health Organization (2008) sugere a questão da formação e o desenvolvimento da carreira dos profissionais como um dos princípios no cotidiano do tratamento da dependência de droga, descrevendo ações e estratégias como: 1) mecanismos de avaliação das práticas desenvolvidas pelos profissionais; 2) incentivo à carreira, com supervisão, educação, treinamento, cursos rápidos ou outros formatos de educação (a distância ou pós-graduação); 3) desenvolvimento de supervisão clínica para o cuidado dos profissionais; 4) investimento na formação de profissionais já no início de suas carreiras, fazendo parte dos currículos universitários e da educação continuada, sendo essencial para a alta qualidade do serviço e, além disto, disseminar práticas baseadas em evidências.

Além deste, o Conselho Federal de Psicologia (2011) sugere que a atenção psicossocial conduzida pela lógica da responsabilização, da integralidade e do compromisso profissional só seria possível se o trabalho preconizado caminhasse pari passu com a educação permanente, não necessitando de um programa formal e rígido, mas com práticas de aprendizagem em serviço como discussões, reuniões semanais, estudos de caso e construção coletiva para o desenho do cuidado.

Os profissionais dos CAPS AD destacaram que, apesar das dificuldades, algumas iniciativas de capacitação foram oferecidas pelos Centros de Referências sobre Drogas (BRASIL, 2010) e o Programa de Educação Tutorial (PET) em Saúde Mental, organizado por algumas IES brasileiras. Há um entendimento, tanto da percepção dos profissionais como também dos estudos teóricos, da importância de investimentos governamentais, tanto no ensino em saúde, como na educação permanente em serviço para suprir a lacuna de aprendizagem dos profissionais dos CAPS AD. Neste sentido, na Figura 1 foram listadas pelos profissionais as atividades de aprendizagens nas quais consideram relevantes para as demandas no cotidiano dos serviço.

 

 

Os profissionais entrevistados consideraram a aprendizagem como ponto estratégico para mudanças benéficas nas atividades rotineiras no CAPS AD e que, por este motivo, há necessidades de investimentos em diversos formatos de ensino-aprendizagem, como inclusão e interação com estudantes e professores de IES, autoaprendizagem, educação continuada e participação em atividades de gestão.

Essas atividades foram justificadas no estudo em função: i) da falta de conhecimentos específicos na área; ii) da dificuldade para lidar com a variabilidade dos casos; iii) da ausência de formação em saúde mental durante a graduação; iv) da falta de oportunidades de aprimoramento e ampliação dos conhecimentos; v) da necessidade de qualificar o atendimento ao usuário; vi) da necessidade de compartilhar experiências com outros profissionais e serviços e vii) da ausência de oportunidade de capacitação sobre as políticas, as diretrizes e o modelo de cuidado psicossocial adotado pelos CAPS AD.

[...] quando essa equipe do CAPS veio para cá e recebeu 50 pessoas mais, que vinham duma formação hegemônica e hospitalocêntrica, ai tivemos conflitos. Isso que faltou e falta treinamentos continuados sobre o que é a saúde mental e quais os objetivos de um CAPS [...] (Profissional do CAPS AD).

[...] eu acho que a formação também, eu acho que a gente precisa muito, sempre estar se reciclando, aprendendo coisas novas, tendo olhares diferentes [...] (Profissional do CAPS AD).

Este cenário dos CAPS AD, que demonstra a ausência de aprendizagens para as inovações em saúde mental do modelo psicossocial, contraria documentos governamentais do Ministério da Saúde (2004, 2007, 2011), que afirmam que o profissional de saúde, como um operador do cuidado, deveria ser capacitado para analisar os processos de trabalhos e construir uma rotina de práticas e tecnologias em saúde com habilidades sociais, denominadas de baixa exigência, ou mesmo tecnologias leves, mas pouco enfocadas na formação universitária dos cursos da área da saúde no Brasil. Portanto, mostram-se urgentes e necessários investimentos em politicas do ensino superior como também de educação permanente em serviço (VASCONCELOS, 2009; SILVA, ABBAD E MONTEZANO, 2019; ONOCKO-CAMPOS, 2020).

Neste sentido, os resultados deste estudo mostraram um distanciamento entre o estudo empírico - representando a realidade dos serviços - os documentos governamentais, concluindo pela necessidade de investimentos nas reformulações dos programas acadêmicos nos cursos da saúde, como também nos modelos de educação permanente em serviço que possibilitem tornarem-se fios condutores para o desenvolvimento de práticas na rotina dos serviços para transformá-los conforme as diretrizes das politicas públicas da saúde, como a Politica de Álcool e Drogas, pela valorização da interdisciplinaridade, do território e da inserção social do usuário e, assim, lidarem com as complexas necessidades do serviço.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O resultado mostrou que os objetivos da pesquisa foram atingidos, pois descreveu o processo histórico e político do ensino em saúde e das políticas de formação permanente, além de trazer a percepção dos profissionais dos CAPS AD sobre sua realidade, as demandas de aprendizagem e desenvolvimento de competências dos profissionais no serviço para a melhoria da atenção em saúde mental frente a essa problemática da saúde pública.

Os resultados encontrados e as discussões teóricas realizadas descrevem avanços tanto no ensino superior em saúde, por meio de políticas governamentais de formação com investimentos nas Instituições de Ensino Superior, como também na educação permanente, por meio de planos e políticas setoriais, como o plano Crack é possível vencer. Além disso, apesar dos investimentos ocorridos, apontam para a complexidade do modelo psicossocial para lidar com usuários e o consumo nocivo de drogas, gerando mudanças necessárias na formação e na educação permanente dos profissionais que atuam no SUS e em especial, os CAPS AD.

É importante considerar que os relatos dos profissionais são relevantes sobre a necessidade de melhoria na formação e na aprendizagem nos locais de trabalho, de modo a motivar e estimular reflexões advindas das mudanças no modelo de cuidado em saúde. Portanto, a relação entre formação e a aprendizagem em serviço é relevante para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), para a articulação dos serviços de saúde com a rede e para o modelo psicossocial da saúde mental.

As fragilidades da formação, somados à alta rotatividade dos trabalhadores em projetos institucionais e diversos problemas organizacionais e gerenciais do serviço, têm dificultado na inclusão de tecnologias inovadora que corresponda ao modelo psicossocial da política de saúde mental e consolidação do SUS.

Esse cenário de mudanças na educação superior é significativo, mas com resultados ainda pouco expressivos no desenvolvimento do modelo de cuidado instituído pela política de saúde mental, pois a formação em saúde ainda não incorporou os novos valores e princípios, comprometendo o desenvolvimento de competências para práticas que respondam ao modelo psicossocial, gerando, entre outros fatores, a necessidade de maiores investimentos de educação permanente em serviço como uma estratégia para superar essa lacuna.

 

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